Aquele do Macaulicalque

Foto que mostra apenas o recorte do torço de uma mulher idosa sentada em uma cadeira, com o centro da atenção nas mãos que tricotam com linha rosa


— …vando? Xeu ver… Tá gravando sim. Podemos começar, então.

— Uhum.

— Então, Dona Almira, acho que posso começar pela pergunta que todo mundo se faz quando pensa na senhora. Quando foi que a senhora percebeu, como dizer, se deu conta de que é imortal?

— Ah. Difícil dizer, moço. Porque, né, não dá pra dizer que eu sou imortal. É o que o povo fala, mas eu fico pensando que não é porque eu não morri que eu num vou morrer, né? Pode acontecer amanhã, até hoje. A qualquer momento!

— Mas a senhora está tão bem…

— Rá, rá, os médicos dizem que sim, né? Meus exame tudo certim.

— O diretor do hospital disse que a senhora tem os órgãos de uma pessoa de trinta anos!

— É muito estranho ver todo mundo sabendo do seu corpo, né não? Discutindo uns número que eu nem sei que que serve.

— Eu imagino…

— Mas, ô, moço, eu tô brincando. Eu sei o que cê quer saber. E acho que foi mesmo quando eu vi aquela freira na tevê. Tava eu mais minha filha assistindo Fantástico quando fizeram uma matéria da freira que era a mulher mais velha do mundo. Falaram que ela tinha cento e quinze ano. Aí minha filha virou pra mim, né, ela tinha uns noventa e cinco. Que Deus a tenha! Ela falou, mãe, você teve filho tarde, né? E eu tive mesmo, sabe? Eu já achava que num ia casar mais, mas o Estevão, meu saudoso marido, ficou viúvo e queria casar de novo. A mulher morreu dessas doença de respirar que tinha muito. Aí, falei pra ela isso, que tive ela com trinta e dois. Isso foi lá na década de noventa e algo, a reportagem. E ela ficou fazendo as conta. E falou, ah, mãe, você tem mais.

— E então a senhora percebeu que era especial.

— Especial? Que isso, moço, sou só uma pessoa vivendo a vida dela no seu cantinho.

— Mas a senhora tem que admitir que é diferente do resto dos seres humanos.

— Uai, mas todo mundo é diferente. Esses dia vi um rapaz todo sem cabelo no corpo. Já vi um que era tão alto que abaixava pra passar na porta.

— Sim, mas…

— Eu sou tão diferente quanto qualquer pessoa por aí.

— E quantos anos a senhora tem exatamente?

— Cento e quarenta e nove. Ano que vem a prefeita falou que vai bancar um festão. Rá, rá, rá, disse que num quero nada não, mas se tiver uns bicho de pé pode me mandar uma bandeja. Amo bicho de pé.

— E existe registro de nascimento?

— Ô, moço, naquela época tinha registro de nada não.

— Desculpa, mas você veio aqui duvidar dela?

— Joana, para! Perdão, moço, é que tem um pessoal que fica querendo se intrometer na nossa vida. A maioria hoje é uns jovemzim querendo fazer vídeo pra internet. Querem de todo jeito descobrir que eu tenho metade da minha idade.

— Bom, tem os exames da senhora, da idade biológica.

— Disso aí eu nem entendo, não. Mas eu também num faço questão. Quem quiser acreditar, ótimo. Quem não quiser, tudo bem também.

— E tem a foto.

— Ah, tem a foto.

— Que foto?

— Busca lá, Joana. A Joana é minha tatataraneta, sabe, tá fazendo vinte mês que vem. Veio morar comigo por causa da facu… Essa mesma, obrigada. Olha aqui, moço.

— É a senhora? A senhora era muito bonita, com todo o respeito.

— Rá, Rá, eu tinha meus encanto. Mas ainda tenho, viu?

— É de quando essa foto?

— Eu respondo essa, táta, adoro essa história. A táta tirou essa foto em um circo que passou na cidade dela que tinha um fotógrafo. Foi presente do tato, o esposo dela. Foi em mil novecentos e quatorze.

— Mas aqui…

— É, aí ela já devia ter trinta e algo.

— Trinta anos em mil novecentos e quatorze!

— Um pouquinho mais, mas pode ver que eu parecia mais jovem do que era, viu? Rá, rá.

— E a Joana é sua descendente mais nova?

— Ah, não, tem o Alfredo.

— Alfredo?

— É, ele ali.

— Onde? Ah.

— Pois é, moço, a táta arrumou esse gato xexelento na rua e não desgruda mais dele.

— Olha como cê fala com seu primo!

— Eu lá tenho primo bicho?

— Ele é melhor que muito primo gente.

— Se você diz…

— Aham. Bom, a senhora tem quase cento e cinquenta anos, mais do que qualquer ser humano com registros consistentes.

— Na bíblia tem mais.

— Sim, digo cientificamente.

— Humpf.

— Bem, vamos pegar esse gancho. A senhora é religiosa? O que acha que aconteceu para viver tão bem por tanto tempo?

— Ah, num sei não, moço. De verdade. Eu até rezo por resposta, mas nunca me mandaram nenhuma não. Às vez, Deus só esqueceu de me pegar. Rá, rá! Como é aquele filme mesmo, Joana? Aquele com o Macaulicalque?

— Esqueceram de mim?

— Esse aí. Vai dar uma hora ele vai lembrar e vem me pegar. Enquanto isso, eu vou vivendo, né.

— E como é viver no seu caso? A senhora ainda faz planos pro futuro?

— Uai, claro! Por que não faria?

— Geralmente as pessoas ficam mais apegadas ao passado quando a idade vai chegando. Vão se achando velhas demais para começar coisas novas.

— Se ocê quer saber a minha opinião, parece um jeito bem burro de ver as coisa, né não? Desculpa o palavreado. Rá. É que enquanto existe hoje, existe amanhã. E enquanto tem amanhã, tem coisa que você pode fazer amanhã.

— É um jeito de ver as coisas.

— Tem aquelas pessoa que fica, ah, viva o dia de hoje como se não tivesse amanhã. Mas, se não tivesse, ocê não tava vivendo hoje, porque só existe amanhã em relação a hoje. Ele sempre existe, né?

— Acho que não entendi muito bem.

— É que a ideia de ter começo, meio e fim na vida faz a gente achar que isso é uma regra definida, assim, o começo só tem começo, o meio só meio e o fim é só pra fim. Mas por que eu não posso começar uma coisa no fim? Por que não posso parar no meio?

— Sei…

— Pensa só, eu aposentei de ser costureira quando tinha quase setenta. Foi ali em mil novecentos e quarenta e algo. Imagina se eu tivesse parado de fazer as coisa tudo? O tanto que ia ser chato hoje em dia, rá, rá.

— A senhora continuou trabalhando?

— De vez em quando, mas Deus me livre. Eu num ganhei mais vida pra viver pros outro não. Fazer coisa pode ser uma distração, uma atividade, uma viagem. Pode até ser ficar aqui passando a mão no Alfredo, pensando nas coisa. Assistir um filmim. O Macaulicalque ainda faz filme?

— Não sei dizer.

— Menino bom, aquela cena dele gritando pro espelho, lembro até hoje. Então, viver é viver. É sonhar. É conhecer. É despreocupar. É começar. Todo dia tem começo pra começar de novo.

— É uma forma bonita de ver o mundo.

— Ah, não sei, moço. É só a forma que eu vejo. Se eu tenho mais tempo, eu vou aproveitar o tempo. Mas quando eu tô assim emburrada, tá tudo bem não fazer nada também. A gente se apega muito ao que deve ser e fazer, né?

— Então a senhora tem uma mensagem para nossos espectadores.

— Uai, num sei. Num quero sair por aí dizendo o que as pessoas devem fazer. Só se for, assim, fazer o que sonham e sonhar em fazer, sempre que der. E fazer as coisa sem consequência também, porque não precisa tudo ter motivo. Ter sentido. Eu ainda ser viva não faz sentido, mas isso não impede eu de viver, sabe? Às vez, a gente só quer ser a gente, do jeito mais a gente que tem de ser. E não tem proble…

— Senhora?

— …

— Senhora, tudo bem?

— …

— Ai, meu deus, Dona Almira?!

— RÁ! Te peguei!

— Á.

— Rá, rá, rá. Viu a cara dele, Joana? Imagina se eu tenho um treco e me vou bem aqui agora? Todo mundo cai nessa porque sempre acha que eu tô prestes a morrer.

— …

— Táta, o…

— Moço?

— …

— Ei, moço!

— …

— Ai, santo! Joana, minha filha, pega uma água que o moço tá muito pálido!

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