O filme Parachute e os clichês de neurodivergência

Imagem promocional do filme Parachute



Isso pode parecer um choque para você, mas Hollywood não é exatamente uma referência em retratar a neurodivergência. Por isso que, quando alguém faz diferente, mesmo com uns problemas, ele se destaca tanto para mim.

Eu fico, nossa, fizeram o básico. Que coisa, né?

E é a aparente preocupação maior ao retratar esse tipo de situação como foco narrativo que eleva ainda mais o excelente Parachute, escrito e dirigido por Brittany Snow – aquela mesma que cantava no The Bellas com a Anna Kendrick.

Logo depois que o filme terminou, fiquei pensando em como poderia explicar o que mais me cativou nele – além, claro, de atuações muito boas e um roteiro bem amarradinho.

Mas só conseguir pensar em falar sobre Parachute listando todos os clichês de transtornos mentais que vejo retratados no cinema e como isso é estranho para quem realmente convive com esse tipo realidade. 

Eu entendi o que Parachute foi para mim analisando o que ele não é. Baseando em alguns lugares-comuns tão presentes que resolvi listar.


Clichê 1: O distúrbio psicológico baseado em trauma

Traumas agravam ou até causam distúrbios físicos e psicológicos nas pessoas. Isso é um fato. Tanto como gatilho quanto como a última gota d’água – bom, no caso de alguns traumas, como uma enxurrada que transborda o balde de uma vez.

Mas um problema comum em filmes é a persistência no trauma como explicação para um desequilíbrio mental. Mortes inesperadas, falta de uma figura próxima na vida, acidentes e síndrome do sobrevivente.

De novo, é o tipo de acontecimento terrível e definidor na vida de uma pessoa e, sim, é provável que quem passe por isso precise de tratamento profissional por muito tempo.

O problema é que quase a totalidade dos roteiros usam um trauma como uma muleta. Afinal, é mais fácil explicar para o público um distúrbio como algo proveniente de um único e pontual evento.

O que se perde com isso é a oportunidade de mostrar como você não precisa passar por um trauma para precisar de ajuda. Para ter alterações crônicas ou agudas de sua percepção de si.

Um sentimento muito comum de quem passa por depressão ou outros transtornos é pensar: por que estou sentindo isso se está tudo bem na minha vida, tenho conforto e pessoas que se importam? Você tem sentido, mas não o ânimo ou o foco.

Os dois lados não são excludentes. Com todo o apoio do mundo, a gente ainda precisa se reajustar conforme nosso ritmo e nossas possibilidades: tratamento, remédios, processos. Entender isso é o primeiro passo para buscar ajuda. E disseminar essa ideia ajudaria as outras pessoas em volta a entenderem também que distúrbio mental não é sobre estar triste ou com problemas na vida.


Clichê 2: O amor cura tudo

Outro tema comum em filmes que abordam questões mentais é o encontro da pessoa perfeita que rearranja toda a sua visão de vida. A ideia de que um par romântico sagaz, levemente contestador e que conheça lugares diferentões seja o suficiente para mudar a forma como pensamos.

Claro que fazer esse comparação direta aqui é bem simplista, mas o quanto a ideia de que só uma pessoa te entende e por isso é seu par perfeito não leva a relacionamentos problemáticos? É o pensamento certeiro para que uma pessoa domine a outra, em uma relação de dependência nociva.

Tirando a visão romântica, ninguém é o encaixe perfeito de ninguém. Até porque é impossível montar o quebra-cabeça todo sem umas peças que tem dentro de você. Relacionamentos envolvem concessões, atritos e decepções, invariavelmente. E provavelmente o outro está tão incompleto e precisando de reconhecimento quanto você. É preservando parte de cada um que o casal se torna sua própria terceira entidade.


Clichê 3: Terapia resolve tudo

Terapia é muito importante, mas não é para todo mundo. O processo de convivência com neurodivergência – conviver porque não há cura, mas eu já chego lá – é diferente em cada pessoa. Remédios, doses, tratamentos, abordagens, tudo muda.

Mais uma vez para simplificar esse entendimento, muitos filmes tratam a conversa com o psicólogo como a chave para superar um problema.

Ela é uma chave sim, mas a porta tem uns 10 trincos diferentes.


Clichê 4: A epifania curadora

Ok, eu admito. Esses clichês não são tão clichês por um entendimento errado do que é um distúrbio psicológico. Pelo menos não inteiramente.

É a mesma conversa do “felizes para sempre”. Se você não diz isso, a história não se conclui. O espectador termina com perguntas, que demandam respostas, que demandam sequências intermináveis. Finais abertos são interessantes até o ponto em que não são incompletos para absorver a história.

Mesmo assim, eu não consigo deixar de ficar com um gostinho ruim sempre que o filme termina com protagonistas tendo grandes epifanias sobre a causa de suas angústias e dão a entender que elas apenas somem.

Eu convivo com a depressão desde que me conheço por gente. Dez anos atrás, fiz um tratamento ótimo com remédios associados à terapia que me ajudaram muito a lidar com o que sou e o que sinto. Mas o resultado é este: lidar, entender, mitigar. Infelizmente, ainda não tem cura para a maioria dos transtornos, apenas o controle.

E se houver uma cura, ela com certeza não vai ser só entender que você tem que deixar o luto de lado e seguir em frente. Quantos filmes eu já vi terminarem assim…

O que mais me encantou em Parachute é como ele trata como tema central os distúrbios de Riley (Courtney Eaton), que sofre com dismorfia, ansiedade e transtornos alimentares.

O filme é muito competente em demonstrar a dificuldade que é lidar com as questões, ao mesmo tempo em que consegue dividir a responsabilidade entre o que fazemos de nós mesmos e o que fazem com a gente.

No relacionamento com Ethan (Thomas Mann), vemos uma subversão do clichê do amor que salva. Duas pessoas que se amam, mas que acabam fazendo mal uma a outra por isso. A expressão que deve ter originado o título, “paraquedas emocional”, não está presente no roteiro nominalmente, mas em todos os diálogos entre eles.

Como falei lá em cima, ainda vejo alguns problemas aqui e ali, mas, em comparação com o que Hollywood geralmente faz com esse tipo de história, Parachute foi um filme com o qual consegui me relacionar em um nível bem pessoal. De me fazer vir aqui de novo escrever este texto.




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