O valor de um bom bad ending

Imagem tirada do jogo Neo Cab, mostrando rabuscos feitos no diário da protagonista


Por milhares de anos, a maioria das histórias tinha uma característica em comum: elas terminavam do jeito que quem contava queria e, se você não gostasse, podia no máximo passar para frente sua própria versão.

Aliás, isso acontecia muito. É só ver o quanto as lendas mais tradicionais de todos os povos se ramifica em várias versões diferentes, com pequenas alterações ou caminhos completamente diferentes.

De qualquer forma, o ato de consumir uma história geralmente é uma experiência fechada. Ler um livro, ver um filme, ouvir um conto. Você sabe que, independente do que aconteça, do que você faça ou ache, receberá um final fixo determinado por quem queria que aquele fosse o final da narrativa.

Mas isso mudou bastante nos últimos anos. Primeiro com os livros-jogos, depois com os videogames. Nesses últimos, até se iniciou uma nova tradição: a de good endings e bad endings.

Mas quem determina se um final é ruim ou não?

Como jogos popularizaram os finais divergentes

Imagem do jogo The Walking Dead da Telltale
As escolhas de The Walking Dead


Sendo jogos eletrônicos interativos, eles permitiram algo que não era ofertado ao consumidor de histórias do passado: a capacidade de interferir no desenrolar de seus acontecimentos enquanto elas são contadas. Por mais que a gente sempre grite para a tela, a protagonista do filme de terror nunca sai correndo gritando para fora da casa em vez de andar em câmera lenta em direção a onde o assassino está.

E essa oportunidade, claro, virou algo comum. É legal que a história se molde às suas ações. Os jogadores buscam isso no fim das contas, uma demanda capaz de ramificar as possibilidades em mecânicas e abordagens diferentes.

Há jogos em que não existe um julgamento claro de qual dos fins é bom ou ruim. Os jogos da FROMSOFTWARE são um exemplo. E talvez seja essa a melhor forma de fazer essa trope. Existem também aqueles em que os finais são complementares, ou seja, cada um é uma peça de um final maior e mais abstrato, em que a conclusão se torna a união de todas essas ideias na cabeça do jogador.

E existe também o que para mim é o pior de todos, que é a criação de bad endings e good endings arbitrários. Nesses casos a narrativa é feita de forma que, se você não fizer as ações necessárias, terminará com uma história incompleta, insatisfatória.

Eu sempre tive um problema sério com esse tipo de final porque, claro, puxo sardinha para o meu lado de contador de história. Esconder a narrativa por trás de uma barreira de dificuldade ou de empenho do jogador limita a plenitude daquele roteiro para uma parte grande de seu público. Como se não fossem bons o suficiente para merecer ouvir tudo o que você tem a dizer. Isso nunca fez muito sentido para mim.

Mas nem é exatamente sobre isso que eu queria falar.

Como eu gosto de consumir histórias com finais divergentes 

O fato de eu não gostar desses finais incompletos tem muito a ver com a forma como eu lido com narrativas ramificadas. Eu adoro jogos que são assim, mas talvez de uma forma que não seja muito comum para a maioria dos jogadores.

Pelo menos é o que eu reparo em opiniões de outras pessoas que entram em contato com os mesmos títulos que eu — e até pela forma como muitos desenvolvedores incentivam a exploração de diversos troncos de narrativa.

Eu entendo o apelo, sério. Existe um valor em ver todas as possibilidades, todos os finais e observar de cima como uma entidade divina como todas essas linhas do tempo se dividem. Eu só não me sinto muito atraído por isso.

A forma como eu gosto de consumir essas histórias é muito mais sobre a formação de uma experiência só minha com aquela narrativa. Do mesmo jeito que lendo um livro eu imagino personagens e situações à minha maneira, eu gosto de pensar que aquele jogo é meu e a vivência dele é limitada ao que eu escolho conhecer dele. Limitada às minhas decisões e suas consequências.

Exemplificando essa noção com Persona

Imagem do jogo Persona 4
Os Social Links de Peronsa 4


Um exemplo disso nem é de finais divergentes. A série de jogos Persona possui uma mecânica social muito divertida de usar o tempo disponível para interagir e conhecer melhor personagens secundários da trama. Se você seguir um guia, é possível até conhecer tudo de todo mundo, mas é mais provável que o jogador veja apenas parte desses relacionamentos em uma primeira vez. É isso que aconteceu comigo em P3 e P4, e com certeza acontecerá em P5.

São narrativas que aprofundam o mundo e os personagens e eu consigo entender quem queira ver tudo. Quem queira jogar uma segunda vez para ver tudo que o jogo tem a oferecer. Mas eu funciono diferente nesse sentido.

Eu penso assim: Persona é um jogo em que o tempo faz parte de sua mecânica. Você tem uma rotina entre escola, lutar com monstros e conhecer melhor as pessoas que você gosta. Principalmente no P4, você ainda tem o limite do ano em que você vai passar naquela cidade, convivendo diariamente com aquelas pessoas.

Com o tempo limitado que eu tive no meu jogo, eu dediquei meu tempo aos personagens que mais me cativavam. Estreitei laços com pessoas que se tornaram amigas do protagonista e não interagi tanto com outras, que não combinavam tanto com o que eu pensava dele e queria para mim.

Ao final do jogo, eu não vi tudo o que ele tinha para me dar. A minha história nele foi moldada por minhas escolhas e se tornou só minha. Meus melhores amigos. Meus conhecidos de falar oi no corredor da escola. As pessoas que passaram brevemente pelo meu ano mas não me marcaram. É isso que me encanta mais nesse tipo de narrativa. Voltar para uma segunda jornada, seguindo um guia ou fazendo escolhas diferentes, só transformaria uma experiência emotiva em uma mecânica. Diluiria a força da primeira impressão.

Como Neo Cab acertou exatamente em como eu gosto de me frustrar

Imagem de divulgação do jogo Neo Cab
A visual novel Neo Cab

Eu dei esse exemplo de Persona porque senti algo muito semelhante quando joguei uma Visual Novel que é uma verdadeira gema: Neo Cab. Uma história super bem escrita, com discussões políticas, econômicas, pessoais e até sobre física quântica em uma ambientação cyberpunk.

Mas o que me fez escrever este texto enorme foi exatamente seus finais. Assim como praticamente toda VN, o foco da mecânica não é em ter habilidade de passar um chefe ou a velocidade de ganhar uma corrida, mas apenas fazer escolhas e conviver com as consequências dela.

E é aqui que entra essa minha sensação, a mesma que tive em Persona e em jogos com outros finais. O que mais me impactou nessa narrativa foi uma conversa obrigatória que se tem no final dela, onde os caminhos se definem de vez. Baseando-se nos passageiros que você pegou em seu Uber do futuro e nas conversas que teve, a discussão entre duas personagens vira rapidamente uma D.R.

A escrita é tão boa que eu me senti realmente dentro de uma discussão, com argumentos que pareciam naturais e misturando o tempo todo a lógica com a emoção. Sabe, como duas pessoas discutindo.

Durante essa conversa, me senti várias vezes sendo puxado para o lado da conversa que não queria — em parte por não querer forçar uma briga, ou sentir que o outro lado realmente tinha razão no que estava falando, por mais que eu não gostasse.

Quantas vezes em uma briga com alguém que você gosta, você tinha o argumento perfeito para rebater, mas não disse por que não queria ferir os sentimentos da pessoa? Neo Cab foi o primeiro jogo em que eu senti isso sendo feito de uma maneira natural, que faz todo o sentido com a jornada até aquele ponto e a mecânica central do jogo. É um payoff perfeito dentro do que ele se propunha.

E aqui eu chego na questão dos finais. Por todas escolhas que fiz achando que estava fazendo a coisa certa, eu terminei com o que claramente era um bad ending. Um relacionamento tóxico que continuou, um objetivo que não se concluiu. Cheguei a esse ponto porque o jogo não me deixou fazer escolhas que eu queria fazer, mas não conseguia pelas ações que tinha tomado antes disso.

Essa foi a parte incrível para mim.

(Não, eu não acho incrível a parte da perpetuação de um relacionamento tóxico, mas a parte de uma história poder terminar assim e trazer uma reflexão sobre)

Depois que terminei o jogo fui buscar impressões sobre ele por aí nas internets. Um dos primeiros comentários que li sobre os finais foi "ainda bem que não peguei o bad ending".

Mas eu não penso assim. Eu gosto de me comprometer com o bad ending — desde que, como eu disse, ele não seja narrativamente incompleto. É uma história no fim das contas e, quando construída, as expectativas não alcançadas muitas vezes dizem mais do que o final em que tudo dá certo. É onde ficam as lacunas para que eu possa preencher com minhas próprias reflexões. É a minha experiência e, seu eu cheguei até ela assim, gosto de dar o final triste como definitivo.

Afinal a vida é isso, né? Nunca podemos ter tudo, conhecer todo mundo, ver tudo que planejamos dar certo. Nossas opiniões mudam, pessoas mudam nossa percepção, nossas vivências. O tempo nos limita, nossa bússola moral nos limita. Quando as minhas escolhas levam para um final ruim, isso gera em mim uma sensação de proximidade maior. Uma familiaridade com a falha que é inerente ao jeito que nossas mentes funcionam.

Tem dia que tudo que eu quero é um final feliz para escapar da realidade. Mas tem dia que eu prefiro um ruim para lidar melhor com ela. É tudo uma questão de equilíbrio e de valorizar minhas experiências por menores e mais irrelevantes que sejam.




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