Só eu sei o que aconteceu com Marissa Marcel

Cena do jogo Immortality, frame com a personagem Marissa Marcel entre duas máscaras em uma galeria de arte










Faz um tempo que escrevi um texto aqui sobre o jogo Control, no qual eu falo um pouco sobre como gosto de histórias que chamo de "narrativas arqueológicas": aquelas em que o leitor/jogador/espectador precisa ativamente buscar as peças disponíveis de um acontecimento e conectá-las com base nas próprias ideias sobre o que a história deve ser (patente pendente).

Fazia um tempo, também, que não via outra mídia igual. Talvez porque eu não estava olhando direto. Ou talvez porque parece ser uma tendência. Felizmente, o jogo Immortality me lembrou por que eu gosto TANTO de cavar os ossinhos e montar o dinossauro do jeito que eu quiser.


A mania de tudo ter que ligar com tudo

Ultimamente, tenho acompanhado uma discussão muito frequente pelas internetes a fora: como filmes e séries e outras mídias narrativas em geral estão precisando se tornar cada vez mais objetivas, lógicas e lineares para agradar ao grande público.

Isso é bem fácil de perceber, na verdade, mas confesso que só notei quando tropecei na discussão. Estamos em uma fase do entretenimento dos finais explicados, das cronologias detalhadas, do "essa história na verdade é um gancho para a próxima, que é um gancho para a próxima, que é um gancho para... você entendeu".

Uma daquelas milhões de "regras da narrativa" — exatamente a que eu menos gosto — tornou-se meio que padrão: toda cena tem que mover a história, toda cena tem que ter uma razão de existir.

Por quê?

Claro que o contrário da regra não deve ser uma regra também. O final "decide aí o que aconteceu na sua cabeça" geralmente não é muito legal. Mas existe um meio termo entre essas duas coisas, histórias em que o objetivo não está em uma checklist de pontos de roteiro, que não precisam entregar uma solução cartesiana para cada mistério. Histórias em que a jornada de descobrimento é a recompensa e o final não é exatamente um fechamento, mas uma sensação de satisfação.

Não existe isso de jeito melhor de contar história ou um modelo ideal de narrativa. Esse é o motivo de cansar um pouco quando um desses tipos vira onipresente. E é por isso que, quando a gente se depara com algo diferente, parece tão refrescante.


A minha versão de Immortality

Sam Barlow é um diretor de jogos bem únicos. Desde Her Story, ele vem se especializando em criar narrativas interativas que colocam o jogador como o arqueólogo que citei lá no início. Colocando você para contar a história por ele. Immortality é seu terceiro projeto nesse estilo e, de longe, o que melhor entrega sua ideia em formato de história.

Logo no menu inicial, você pode ler um pouco sobre do que Immortality se trata: um conjunto de gravações de três filmes estrelados pela atriz Marissa Marcel, que, por motivos específicos, nunca foram lançados. O jogo na verdade é uma compilação de todo o material filmado nessas produções e cabe ao jogador utilizar a ligação entre objetos de cena como hiperlinks para encontrar e assistir todo o conteúdo.

O que prova o quanto esse jogo é único é a quantidade de pessoas que se mostram confusas. O que mais se ouve sobre ele é: "Não entendi o que é pra fazer".

Afinal, Immortality quebra duas expectativas tão presentes hoje no entretenimento que parecem quase um dogma:

  1. a de que um jogo precisa ser um trilho entre proposta e objetivo;
  2. a de que uma história deve ser contada ao espectador.

O jogo, ao contrário dessas duas perspectivas, não exige a conclusão de uma tarefa nem conta uma história da maneira formal como se espera. Em Immortality, o jogador busca e monta os acontecimentos até se sentir satisfeito, até que faça sentido para suas próprias ideias.

A resposta para o que aconteceu com Marissa Marcel não existe no jogo. Há elementos entre as filmagens que mostram uma cronologia e pontos bem claros sobre os personagens, mas o brilho de Immortality está nas camadas abaixo disso, de toda a interpretação que você como espectador pode fazer daquele material e daquelas pessoas. Das grandes perguntas até os menores detalhes.

Eu tenho plena consciência de que esse tipo de história não faz sentido como padrão narrativo. Ela exige mais esforço para o engajamento e, muitas vezes, a gente só quer que o detetive descubra quem matou a vítima e resolva o caso.

Mas é muito bom que esse tipo de narrativa exista para que nós mesmos nos sintamos detetives de vez em quando. E que todo mundo possa participar da criação de uma história própria em sua cabeça, mesmo que nunca tenha escrito uma palavra, mesmo que não tenha inventado esses personagens.

Esse processo é tão interessante em Immortality que eu queria muito que ele fosse além do público que joga videogames. Quem gosta de cinema e quem gosta de literatura tem muito o que extrair dessa experiência também. Tanto que as 10 horas que eu passei com ele me inspiraram imediatamente a começar outro projeto.

Afinal, uma prova irrefutável de que uma história é boa é quando ela faz quem ouve querer contar suas próprias.

Eu, por exemplo, levei comigo uma interpretação bem diferente de Immortality do que estou vendo na opinião da maioria das pessoas. E está tudo bem, tenho certeza que é o que Sam Barlow queria quando teve a ideia. Eu me divirto muito vendo as teorias e comparando com as minhas, como se a história de Marissa Marcel continuasse e se desdobrasse exponencialmente ao ser explorada.

Inclusive, no meu Immortality, eu sei exatamente o que aconteceu com ela. E como essa versão é só minha, só eu sei o que aconteceu com Marissa Marcel. 

 




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