Não é que Black Mirror ficou ruim

Foto de bastidores da produção do episódio Eulogia, de Black Mirror. Nela, o diretor e o ator olham para um modelo em tamanho real simulando uma mulher no estilo low-poly

Falar que algo “já não é mais bom como antigamente” é o padrão. É assim com séries, franquias de filmes, músicas, autores de livros, comediantes, podcasters ou qualquer outra coisa que possa se chamar de conteúdo no vocabulário moderno.

É, ao mesmo tempo, uma soma de saturação do que já não é novo com a pressão por novidade. Escritores, cantores, atores, qualquer tipo de artista em destaque comercialmente fica preso no limbo entre ter que fazer o que já é familiar ao mesmo tempo que se renova para outros públicos.

Seja igual, mas diferente.

Essa não é uma equação justa. É uma panela de pressão que em algum momento vai estourar na cara de quem tenta se manter relevante no sentido comercial. A cozinha inteira fica suja e ninguém mais quer entrar para lidar com aquilo tudo.

No fim, o fim é sempre o mesmo. Ou artistas são condenados por não “amadurecerem e mudarem com o público” ou são condenados por aliená-lo ao “mudar demais”. Black Mirror sofre das duas coisas.

Analisar as duas últimas temporadas de Black Mirror ajuda a entender muito esse cenário do “conteúdo de entretenimento” atual — olha quantas aspas eu estou usando hoje. É uma série que está sempre em destaque, mas que gerou uma percepção super negativa nos últimos anos.

Por que isso acontece? Não vou chegar aqui dizendo que tenho a resposta. Não sou tão convencido assim. Mas eu tenho 3 teorias que, pelo menos para mim, fazem bastante sentido. Olha só.


Teoria 1: É gostoso odiar o que faz sucesso

A primeira teoria é uma mais abrangente, uma que todo mundo está cansado de saber. Existe um prazer individual e coletivo em ver algo que é muito famoso cair, até mesmo derrubado pelas próprias pessoas que ergueram.

É só ver quantas criaturinhas surgem das sombras quando um artista faz algo de qualidade ruim ou tem alguma postura indesejada depois de fazer muito sucesso. São quase como Pokemóns, que repetem sempre o mesmo som: “eu nunca gostei, viu como eu estava certo o tempo todo?”.

Não, você não estava certo o tempo todo. Por anos essa pessoa, ou coletivo de pessoas, fez um público feliz, na inspiração ou no escapismo. Perder a qualidade ou o prestígio não torna o que veio antes automaticamente inválido — exceto, claro, nos casos de ações criminosas ou antiéticas reveladas.

Torcer contra, infelizmente, parece gerar um sentimento de superioridade no cérebro de muitas pessoas. Ser diferente te separa do resto, te torna especial. Essa é a raiz de problemas muito mais sérios que estão acontecendo, num mundo que nos ensina o quanto é maravilhoso ser especial. Quando você torce contra tudo que é famoso, vai sempre se sentir importante quando o que é famoso falha.


Teoria 2: O próprio público não sabe o que quer

Parece pedante dizer que o público não sabe o que quer, mas existe uma verdade nisso. A verdade, no caso, é que ninguém é capaz de prever exatamente o que vai ser relevante ou popular no futuro. Quem o faz — no caso, as empresas de entretenimento —, não tem um dom mediúnico. Elas preveem o que vai ser grande daqui um ano porque elas decidem o que vai ser grande daqui um ano.

O “querer” individual é caótico. No vácuo, é impossível dizer que escolhas uma pessoa vai fazer. Mas nós não vivemos num vácuo e é aí que entra o “querer” coletivo. Esse sim é moldado com a facilidade de uma massinha para crianças.

Se todo mundo está falando de algo, comprando algo, usando algo, é essa influência do meio que age como um tsunami na mente dos indivíduos. É o motivo de sequer existir o termo influencer. E é por isso também que muitas séries, incluindo Black Mirror, só estouram de sucesso a partir da segunda ou terceira temporada.

A primeira é utilizada para apresentar um conceito e medir a reação, sendo que a maioria delas é descartada imediatamente. Só as que demonstram algum potencial realmente ganham atenção de quem as publica. Marketing, entrevistas, participação em eventos, impulsionamento nas redes de streaming, tudo isso costuma vir depois. A própria Black Mirror só ganhou a visibilidade que tem hoje quando foi comprada para uma terceira temporada dentro da Netflix. Até então era uma série obscura da Inglaterra que ninguém fora de lá prestava muita atenção.

Se a audiência era pequena na época, por que o consenso hoje é que os episódios das duas primeiras temporadas são as melhores? Se eram melhores, por que não tinha mais gente assistindo?

Esse é o ponto da segunda teoria. O que queremos, muitas vezes, é o que nos dizem que queremos. Fazemos o que os outros fazem e assistimos o que os outros assistem. Sem esse movimento artificial que se torna orgânico impulsionado pela indústria, Black Mirror se torna algo que as pessoas não querem mais com tanto afinco. E a sensação que fica é que, na época que queríamos a série com tanta intensidade, ela era naturalmente melhor. 


Teoria 3: É uma panela muito grande e com muita pressão

Se tem uma coisa que a Netflix provou de novo e de novo nos últimos anos é que ela não sabe lidar com as duas teorias anteriores. Equilibrar a saúde de shows antigos com a fome de emplacar novos termina numa má gestão dos dois caminhos.

Quantas vezes ela cancelou obras antes de dar a chance dela desenvolver organicamente seu engajamento? Quantas vezes mudou o rumo de histórias para se adequar a tendências e perdeu completamente a confiança do público?

Quanto maior é o sucesso, mais dificuldade ela tem de lidar com essa corda bamba. Com Black Mirror não foi diferente. Um exemplo perfeito é esta última temporada. Antigamente, os episódios eram bastante independentes, sempre com uma ou outra referência obscura de interligação entre os episódios, algo como uma rápida piscada de olho para os fãs mais atentos.

Já as duas últimas levas de episódios, principalmente a última, mostram uma influência do que foram os últimos 15 anos do entretenimento televisivo e cinemático: uma necessidade — que muito provavelmente veio da Netflix — de criar seu próprio MCU distópico, com vários temas e linhas de trama se cruzando.

É aí que algo se perde na forma como a proposta inicial do show é trabalhada. Uma falta de foco que termina com a decepção de muitos fãs.


Qual dessas teorias é a certa?

Para uma resposta curta: um pouco das três e, ao mesmo tempo, nenhuma das três. Mas se fosse para dar uma resposta curta, eu já tinha terminado este texto a muito tempo.

Black Mirror se difere da maioria das séries porque o que se discute sobre o grande “não é mais como antigamente” não é a qualidade da produção, o arco de personagens, a inclusão de novos elementos de trama. Por ser uma série antológica, essas coisas ficam em segundo plano. O centro das discussões está na sua proposta que encantou as pessoas: a visão ácida e desesperadora de um futuro em que as relações entre ser humano e tecnologia passam do uso como ferramenta. Tornam-se uma extensão das nossas vidas.

Por que essa proposta não bate mais na gente como antes? São respostas internas e externas à série, que tangenciam todas as teorias que levantei. Para começar, por exemplo, não é um problema de qualidade.

Na temporada 7, tivemos um episódio continuação: USS Callister - Infinity. Com 90 minutos de duração, é um longa metragem bem divertido, com uma tensão bem construída, muita coisa em jogo e personagens carismáticos. Como um episódio de show de entretenimento, é uma obra muito boa.

Mas aí, entra o que se espera de Black Mirror e o que mais me incomodou nesses episódios mais novos: a premissa central da série se tornou um detalhe.

O que se discute em USS Callister — ou o que se pretendia discutir — era a ética em tratar códigos sencientes como menos do que uma pessoa de verdade. Se essa consciência percebe o mundo dela como real, tem seus próprios pensamentos e funciona de forma análoga à humana, por que ela não merece ser tratada como tal?

Sim, isso já foi muito explorado na ficção, mas o diferencial de Black Mirror é parear a teoria com a tecnologia prática que temos hoje e extrapolação para um futuro próximo. É a apresentação de um dilema imediatamente palpável para o público.

Porém, isso, que seria o coração do episódio, torna-se apenas sua casca. Mal se aborda a questão nos dilemas pessoais dos personagens, na relação entre eles, na tensão das escolhas. O único momento de decisão que colocaria o peso necessário para a proposta é resolvido transformando a situação em um Divertidamente.

Peso é a palavra-chave. Black Mirror precisa de peso. Seu mérito está em fazer pessoas pararem um minuto na vida delas para refletir. Refletir sobre aonde levamos a tecnologia e aonde ela nos leva. Um minuto… Mesmo que, depois, a reflexão vire apenas um post de duas frases na internet.

Praticamente todos os episódios nessa temporada foram leves como um arquivo que cabe em um disquete. Em vez de um estudo sobre a humanidade em um mundo digital, tornou-se uma glorificação macabra da tecnologia. “Olha que legal um Cérebro como Serviço, nosso corpo vai virar propriedade das empresas, está vendo?”.

Sim, eu estou vendo. Há anos, sem precisar de reconstrução de neurônios. É uma metáfora vazia.

E, como eu citei, as referências viraram as protagonistas, tão presentes e na nossa cara que a temporada não se torna uma rede, mas dois fones de ouvido emaranhados na gaveta.

Esse é um problema do escritor da série, Charlie Brooker. Mas também é um problema da Netflix. E também é um problema nosso. Lembra na temporada anterior, quando alguns episódios foram de terror em vez de FC? Quanta gente reclamou porque “não era Black Mirror”.

Tem que ser igual, mas diferente.

Mas, para não falar que tudo foi sem peso na temporada, queria terminar com um ponto positivo: o meu episódio preferido dela mostra que ainda há espaço na série para todas as discussões que a impulsionaram para o sucesso. Estou falando de Eulogia.

Em uma baita atuação de Paul Giamatti, o conto usa a mesma tecnologia de tantos outros em Black Mirror, mas, pela primeira vez em muito tempo, ela não é o foco. É até emblemático que, na primeira vez que usa o dispositivo, ele pede para pular o tutorial. Não interessa como o aparelho funciona, interessa como a mente dele funciona.

O cerne de Eulogia está em como nosso ego e nossos arrependimentos funcionam, reconstruindo memórias de nós mesmos que nos ponham em um lugar confortável. É aquela coisa: para nós mesmos, somos sempre os mocinhos da história.

Mas e se fosse possível entrar nessa memória e revivê-la exatamente como foi, prestando atenção em tudo que não era nossos próprios sentimentos no momento? Será que conseguiríamos viver com a ideia de que não somos como pensamos ser? De que não só não somos a pessoa mais importante no ambiente como, muitas vezes, nem somos relevantes para a vida de outras pessoas com quem interagimos?

Essa, sim, é uma discussão pesada, difícil. Muito mais do que seu cérebro sair da área de cobertura. Muito mais do que inventar uma máquina imersiva para atores em filmes e não conseguir criar peso emocional suficiente no fato da atriz passar anos presa dentro dela.

É o tipo de reflexão que nos faz olhar para o abismo que é o canto mais profundo da nossa mente, aquele que deseja com todas as forças ser perfeito e importante, e ter o reconhecimento do mundo inteiro por isso.

Encarar nossas próprias falhas e assumir a responsabilidade pelas consequências de nossos erros é tão distópico quanto um computador que altera a realidade. Queria que o criador, a Netflix, e nós como público pudéssemos dar mais valor a esse tipo de história.

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