Contém moderados spoilers de A Verdadeira Dor (2024)
Dualidade, nuance e conflitos internos nem sempre são fáceis de trabalhar no cinema. Livros podem gastar páginas e páginas presos dentro da mente de um personagem, assim como a gente passa boa parte do tempo na vida real. Pensamentos que acompanhamos no nosso ritmo, com a nossa voz dentro da cabeça, sempre puxando o texto para nossas experiências pessoais.
Já um filme tem geralmente entre 90 e 150 minutos para contar uma história - incluindo trama, motivações e mensagens. É muito difícil se aprofundar nos conflitos de uma pessoa no meio da corredeira rápida que é a narrativa de um longa-metragem. A história precisaria investir pesado no desenvolvimento de personagem ou ficar 10 minutos com a cena parada nos olhos do protagonista enquanto ele narra o que está pensando.
Eu queria que fizessem um filme assim, só pelo inusitado.
Essa limitação transformou cineastas em mestres dos símbolos e significados. Um ângulo de câmera, uma expressão-chave, algumas palavras bem colocadas e os espectadores conseguem captar com facilidade sentimentos complexos. Quando bem feita, uma cena pode explicar muito mais sobre um personagem do que um monólogo de 5 minutos.
Ainda assim, é difícil se aprofundar em sentimentos conflitantes dentro de um filme. Mostrar o sofrimento causado pela nossa eterna necessidade de duvidar de nós mesmos, ou de condenar nossos mais básicos impulsos a partir de noções morais aprendidas desde bebê.
A única saída para isso é fazer o filme inteiro rodar em torno dessas reflexões. E, mesmo fazendo isso, sempre pode dar errado. Acredite em mim: até em um livro, com potencial ilimitado de páginas, é complicado.
E conseguir esse feito foi exatamente o que me tocou tanto no filme "A Verdadeira Dor", escrito e dirigido por Jesse Eisenberg.
A dramédia acompanha a história de dois primos que resolvem fazer um roteiro turístico histórico sobre o holocausto na Polônia, logo depois que a avó deles, sobrevivente do terror de um campo de concentração, falece.
A ideia dos dois - que foram praticamente irmãos a vida inteira, mas que se separaram na vida adulta porque "A Vida Acontece™" - é se conectar uma última vez com a pessoa que amavam tanto durante a vida, visitando o local onde uma senhora aparentemente tranquila, carinhosa e sociável passou um dos maiores terrores do mundo moderno.
O fato de uma premissa tão simples e uma trama que não exige desenvolvimento é o caminho aberto para explorar a relação do ser humano com o sofrimento - dos outros e seu próprio.
Com um excelente roteiro e duas atuações irretocáveis, o filme é um passeio não apenas pela Polônia, mas pela dificuldade de lidarmos com o que sentimos tendo, ao mesmo tempo, um cérebro animal e uma lógica para interpretá-lo.
Para tentar digerir o que eu achei da discussão, separei em 3 pontos.
A dinâmica da comparação
A base para entendermos os conflitos de "A Verdadeira Dor" está no relacionamento dos dois personagens pincipais, David (Jesse Eisenber) e Benji (Kieran Culkin).
Apesar da vó deles ser o fio condutor da trama, que reúne os dois em uma viagem de turismo, os primos criados como irmãos não poderiam estar mais distantes no momento em que estão da vida. Nem poderiam ter personalidades tão diferentes.
Benji é uma pessoa extrovertida, expansiva, que conquista quem está em volta em segundos e faz questão de participar intensamente de tudo. Por outro lado, parece não perceber, ou até ligar, que esse comportamento o faz sempre atropelar o espaço pessoal do primo e dos colegas de viagem.
Já David é o oposto. Um pai jovem que, mesmo uma semana fora de casa, continua a ver e conversar com a filha pequena sempre que tem a oportunidade. O tipo de pessoa que planeja o roteiro aos mínimos detalhes e se sente contrariado quando os planos mudam.
É nessa dinâmica de extremos que a atuação dos dois se destaca. Benji sempre se expandindo. David sempre se recolhendo.
Mas, de novo, só isso não é suficiente para aprofundar em sentimentos que, muitas vezes, nem a gente se dá conta até se passar muito tempo ou trabalhar neles com ajuda profissional.
O brilho do filme está no que os personagens apresentam além do que dizem. As rachaduras que todos nós temos em nossas aparências externas.
Apesar de se amarem como irmãos, fica claro bem rápido como ambos têm inveja um do outro, e como isso faz com que se sintam inferiores quando estão juntos. David inveja a espontaneidade e o charme de Benji. Benji inveja a solidez e clareza da vida de David.
Novamente, não é uma inveja como a gente tem o conceito, como um sentimento puramente ruim. É uma dinâmica de comparação inevitável que todos nós sentimos nos mais diversos níveis. É até engraçado eles serem primos, sendo que uma das experiências mais universais do ser humano é o "primo que deu certo na vida".
Como é o caso no filme, nenhum dos dois é o primo que deu certo na vida para eles mesmos, mas são um para o outro. Todos nós temos a maldição da comparação sob o julgamento do juiz mais enviesado do mundo: nós mesmos.
É um sentimento confuso, implacável e opressor. Racionalizar ajuda, mas não resolve. Sua raiz está além da razão, por mais que muitos fatores agravantes sejam explicáveis por cenários políticos, econômicos e culturais - que diminuiriam muito o problema se conseguíssemos mudá-los.
De qualquer forma, é um sentimento que existe. Ponto. Todos temos que lidar com ele. E olha que essa nem é a discussão principal do filme. É apenas a fundação sobre a qual constrói sua mensagem.
A culpa por sofrer
Existem alguns tipos de culpa que demonstram o quanto somos uns animaizinhos muito complicados. A culpa do sobrevivente é um exemplo: você se sentir culpado por ter sobrevivido em um acidente em que outras pessoas morerram. Ou até a síndrome do impostor, que pode ser vista como a culpa por ter tido sucesso no lugar de outras pessoas que você julga mais merecedoras.
A culpa por sofrer entra exatamente nessa categoria. Sofrer é uma reação automática do nosso cérebro. Eu acho. Eu não era bom de biologia na escola, mas também não vou atrás de dados técnicos agora.
Melhor mudar a abordagem.
Sofrer PARECE algo natural da gente. Se sua pele é cortada, os nervos conduzem impulsos. Se seu ego é cortado, o coração aperta. Se Nuvem de Lágrimas toca, os olhos ficam nublados.
O problema de pensar no sofrimento como uma reação biológica é que reações biológicas só conhecem o mundo da pele para dentro. O que você toca só é sentido quando os nervos são ativados. O que você enxerga só existe depois que o cérebro recebe o video_de_agora.480p.screener.HDR.x264.MKV que o olho gravou.
Portanto, o nosso instinto de sofrer vem antes da racionalização sobre o que estamos sentindo. Não dá para falar "quer saber, hoje não tô afim de sentir nada não". QUE SONHO SERIA VIU.
Quando a lógica finalmente processa o sentimento, faz isso em retrospecto. E muitas vezes vem a culpa. Culpa essa que é o ponto principal de "A Verdadeira Dor". Toda a dinâmica do filme é pontuada pela dualidade de dois personagens expondo suas frustrações e aspirações numa vida comum de classe média-alta estadunidense, enquanto caminham por lugares que significaram o terror e a morte de milhares de pessoas nem 100 anos antes.
O filme reconhece e aponta para a situação sem ser cínico, o que seria uma armadilha muito fácil de cair nesse tipo de história. Ele não quer dar lição de moral ou quantificar o quanto as pessoas sofrem, mas explorar como é complicado lidar com nossas próprias emoções.
A cena em que isso fica mais explícito está mais para o começo, quando o grupo começa sua viagem pela Polônia. Com assentos de primeira classe em um trem, as pessoas estão sorrindo e conversando com leveza, quando Benji, que até então mostra apenas seu lado charmoso e irreverente, explode. Ele se incomoda e pergunta aos gritos como eles podem estar tão felizes e aproveitando do luxo na mesma linha em que pessoas eram transportadas para sua morte décadas atrás.
A princípio, parece uma discussão cansada e vazia do tipo "como você pode jantar feliz enquanto outras pessoas passam fome". É um tipo de responsabilidade que se tenta aplicar às pessoas que é simplesmente insustentável.
A minha leitura é a de que Eisenberg botou essa ideia no início exatamente para se aprofundar nela ao longo do filme, abordando de uma forma mais sensível qual é a relação humana com o sofrimento. Depois de aprender mais sobre a personalidade e a vida de Benji, o espectador consegue entender perfeitamente de onde veio esse argumento em meio a um acesso de ansiedade.
Benji, assim como todos nós, sente culpa por sofrer, mas isso não impede ninguém de fazê-lo. É uma armadilha cruel e inescapável do nosso cérebro: nos fazer sentir mal por algo que não temos controle.
Esse mecanismo leva exatamente ao conflito interno que gera ainda mais angústia. A retórica que citei ali em cima é tão comum porque é válida. Como pode eu estar mal por não ter conseguido um emprego ou ter queimado o arroz que fiz para o almoço em família se alguém passou por algo como o holocausto?
É natural não nos sentirmos merecedores de sofrer. Mas o que esse pensamentos gera? Pois é, mais sofrimento.
A equação do sofrimento
Alguns sinais biológicos observados pela ciência mostram como nossos cérebros não são as coisas mais confiáveis do mundo.
Quer dizer, PARECEM não ser. De novo, eu não sei nada disso, só vi por aí.
O fenômeno de membros fantasmas faz pessoas sentirem até dor em partes do corpo que não estão mais lá. Um ataque de pânico pode gerar no corpo comportamentos idênticos aos de alguém deparando-se com a própria morte, mesmo que esteja de boa no sofá assistindo TV.
O que eu quero dizer é que, mesmo sendo um "troço muito louco das ideia", o cérebro é limitado na forma como utiliza suas ferramentas para interpretar o mundo dentro e fora de nós.
Com isso eu quero chegar ao seguinte ponto: não existe sofrimento objetivamente maior ou menor quando comparamos duas pessoas diferentes, sendo que seus mecanismos agem da mesma forma independentemente dos fatores externos.
Sofrer faz parte da vida e vai ter momentos que sofremos mais ou menos, mas nem sempre a relação do acontecimento com a consequência será linear e calculável.
Essa é a impressão que me deixa o filme "A Verdadeira Dor", uma abordagem bastante sensível e com nuances sobre o que significa sofrer.
Do mesmo jeito que pessoas que acham que sofrem mais do que todo mundo são insuportáveis, achar que não merecemos sofrer é injusto com nossos próprios sentimentos.
Não que essa discussão toda vá fazer você se dar uma colher de chá.
Você é igual a mim.
Sofre para mudar.
Demora.
Mas muda.
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