Becky Chambers e seus universos conversando sobre o universo

 

Capa de A Vida Compartilhada Em Uma Admirável Órbita Fechada, de Becky Chambers

Este texto pode conter spoilers de "Longa viagem a um pequeno planeta hostil" e "A Vida Compartilhada em Uma Admirável Órbita Fechada", de Becky Chambers

Eu nunca gostei muito de escrever resenhas especificamente por dois motivos: porque eu não quero dar spoiler das coisas e também porque eu não consigo não dar spoiler das coisas.

Mas tem algumas obras que a gente consome na vida que não consegue se segurar. No nível de faltarem 30 páginas para acabar o livro no momento em que escrevo este texto e eu fui acometido por uma vontade tão grande que larguei ele lá para vir aqui.

A vontade veio especificamente de uma que deve ser das últimas conversas entre Tak, Sidra e Sálvia, mas lá vou eu começando dar spoilers em potencial. Eu não vim fazer isso. Eu vim falar de uma coisa bem específica.

A raiva que eu sinto de Becky Chambers

Eu tenho que confessar que comecei a ler Becky Chambers exclusivamente porque ela cria títulos muito legais. O primeiro, Longa viagem para um pequeno planeta hostil, cria tantas perguntas partindo de uma pequena sentença que eu queria respostas. O que é um planeta hostil? Os habitantes são hostis ou a própria bola flutuando? E por que alguém faria uma longa viagem até esse planeta se ele é tão hostil assim? Não seria tipo ficar horas tentando conectar uma internet discada só para abrir o Twitter?

Dando o máximo de spoilers que vou dar sobre esse primeiro livro na série Wayfarer (Andarilha, o nome da nave nessa história), eu digo que não encontrei nenhuma dessas respostas exatamente. Porque, com dois ou três capítulos, elas já não tem importância nenhuma.

Fica bem claro desde o início que Becky não se preocupa muito com a hostilidade do planeta ou as razões por trás da longa viagem. Em suas histórias, todo o valor e o peso emocional que o leitor investe está nos personagens. É uma obra de diálogos e o tipo de laços que a convivência cria em um determinado tempo. É uma narrativa sobre como não precisamos necessariamente de atos heroicos e grandes gestos para crescermos e nos conectarmos com outras pessoas.

Esse ponto foi o que mais me chamou a atenção em "Planeta hostil". Não existe forma certa ou errada de se contar uma história, claro, mas é gritante o quanto a maioria das narrativas nos livros, TV e cinema usam a trama como agente de mudança.

(Eu não me excluo disso não, antes que você grite comigo e faça minha autoestima deficiente desistir do meu argumento)

Costumo pensar nisso às vezes quando estou assistindo ou lendo alguma coisa. Como está internalizado em nós que precisamos da busca por grandes atos para nos sentirmos mais importantes. Como o nosso valor é comparado pelo que fazemos em vez de o que somos.

É por isso que ler Becky Chambers foi tão refrescante no ano passado e neste. Além do espaço que ela abre para a diversidade — fazendo que ficções científicas fazem de melhor que é extrapolar nossa sociedade no infinito do universo —, ela consegue conter uma narrativa espacial toda dentro de alguns personagens.

Existe sim um conflito intergaláctico, mas ele não é explorado por guerras ou atos heroicos de rebeldia. É explorado pela visão individual de cada ser dentro daquele contexto.

Eu já disse que queria saber muito mais sobre como escrever diálogos e ela é uma referência para invejar e para me inspirar. Para perceber que nem todo crescimento se faz de superar um desafio. Às vezes, é possível amadurecer muito mais simplesmente por entender o lado de outra pessoa, ter empatia. A empatia, inclusive, é o grande trunfo de Becky Chambers.

É um tipo de noção que dá aquela vontade em mim de rechear uma história com outras histórias. De experimentar como não é preciso destruir uma estrela da morte para se conectar com as pessoas que você se importa. Ligações muito mais fortes podem ser feitas no caminho até lá, com o sabre de luz guardado em um armário.

Ainda dá para discutir IA sem ser clichê

Eu acredito que o que Becky fez no segundo livro é um exemplo ainda melhor disso. Se Longa Viagem A Um Pequeno Planeta Hostil foi um prazer de ler, A Vida Compartilhada Em Uma Admirável Órbita Fechada entrou fácil naquela listinha de melhores livros da vida.

Acho que muito do que eu preferi nessa sequência tem a ver com a única dificuldade que eu tive com o primeiro: eram muitos personagens. Sendo introduzido a um universo novo, cheio de espécies, planetas e tecnologias que nunca ouvi falar, era comum eu me perder sobre quem estava falando, quem era aquela pessoa, qual era sua origem.

Quer dizer, isso não é necessariamente culpa dela. É algo que eu tenho com frequência principalmente por perder o foco no meio da leitura e perceber que li duas páginas sem ter lido de verdade porque eu estava pensando em outra coisa. Mas mesmo assim.

A Vida Compartilhada Em Uma Admirável Órbita Fechada (eu devia ter dado ctrl+c nesse nome a essa altura) não é uma sequência direta da história do primeiro livro na série Wayfarer, embora conte com lugares e personagens que aparecem na história anterior.

Nele, um IA consciente é transferida de uma nave — em que operava todos os sistemas, monitorava todas as câmeras, ouvia todos os cômodos — para ser instalada em um corpo sintético humanoide. Boa parte da história é sobre essa personagem se relacionando com sua nova condição.

Sim, assim como você agora, eu também comecei essa premissa com um pé bem atrás, quase fazendo espacate. A discussão sobre o que é humanidade usando inteligências artificiais como ponto de partida parece tão saturada que é difícil não embarcar com um pinguinho de cinismo.

Na verdade, acho que já saturamos os dois tipos de abordagem. Primeiro sobre a discussão se a humanidade é ligada de forma intrínseca à consciência, como se uma validasse a outra. Se a IA é consciente, ela é humana?

Depois veio a segunda onda: se a IA é consciente, por que ela iria escolher ser humana? Por que se contentar com o que temos de limitatador física e psicologicamente?

A surpresa positiva em A Vida Compartilhada Em Uma Admirável Órbita Fechada (agora eu dei ctrl+c!) é que, embora a abordagem de Chambers tangencie essas questões, ela não é o ponto principal.
Enquanto acompanhamos Sidra em sua jornada por se adequar a uma nova realidade, o que a autora quer explorar tem muito mais a ver com a nossa própria dificuldade em nos adaptar a condições novas. Também com o fato de que se sentir infeliz ou em assincronia com o próprio corpo e o ambiente em volta é algo esperado da natureza conflitante que é ter consciência de nós mesmos.

Sidra, a IA e uma das protagonistas da história, não sonha em ser humana nem despreza as limitações humanas. Ela não cai em nenhum dos dois clichês. Em vez disso, ela usa os mesmos mecanismos lógicos e sociais para fazer o que a gente faz todos os dias: aprender melhor sobre o que significamos para nós e para as pessoas que importam. Como boas inteligências que somos, naturais ou artificiais, tentamos criar um laço entre o que queremos ser e o que achamos ser.

Se você me permite um pequeno spoiler do começo da história, um capítulo bem no início do livro (ainda nas 40 primeiras páginas) foi o que me deu esse estalo.

Primeiro pela destreza de Becky Chambers em conseguir em 3 ou 4 cenas definir a personalidade de três personagens diferentes — mas não vou falar sobre isso para não ficar com raiva dela de novo.

Em uma dessas cenas, Sidra está ainda muito incomodada com seu novo corpo. Ela pode se conectar à internet e acessar informações, esse não é o problema. Ela também consegue utilizar sua memória para fazer conexões cognitivas e se comportar como uma perfeita humana. Nada de errado aí também.

Mas, depois de passar tanto tempo como IA de uma nave, algo na percepção dela está causando uma ansiedade incrível, sem que ela consiga entender por quê.

É aí que Sálvia tem uma ideia. Rearranja móveis, arrasta a mesa para um canto do cômodo e pede que Sidra suba e observe o ambiente lá de cima. Algo na IA se acalma. O problema não era o conflito interno de ser consciente e se isso significa humanidade ou não. Era apenas uma pessoa (mesmo que sintética) recuperando um pouco do que foi o ponto de vista dela por anos — no mesmo ângulo em que ela "enxergava" pelas câmeras da nave —, encontrando um meio termo para ligar seu passado e seu futuro.

Foi nesse capítulo que eu decidi que ia escrever alguma coisa sobre o livro, mesmo que eu não goste muito de fazer resenhas.

(Não sei se isso é de fato uma resenha, mas talvez eu devesse colocar estrelas no final)

Depois de tantas histórias usando IA para discutir o que é consciência e o que é humanidade, depois de ver tantas histórias usando atos heroicos para definir personalidades, é muito bom sentir esse gosto em ler uma história sobre como a única coisa que nos une como seres conscientes é que estamos sempre tentando nos encaixar. Ou seja, estamos todos desencaixados e isso nunca deveria ser um problema.

Agora deixa eu ir que tenho 30 páginas ainda para terminar!




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2 Comentários

  1. E eu tenho raiva de você, por escrever bem e conseguir expressar tão bem os sentimentos sobre as coisas que você gosta.

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    1. Aaaaah obrigado Mirella! Vou segurar todos meus instintos de não conseguir aceitar o elogio.

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