Breath of the Wild: o tempo é um deserto

Imagem do jogo The Legend of Zelda: Breath of the Wild

Não faz muito tempo eu encontrei perdido no armário um trabalho de ciências da terceira série. Eu tinha nove anos. Nele eu falava sobre a minha vida e começava com esta frase:

“Hoje eu sou um garoto esperto, gosto de brincar, estudar e de fazer muitas outras coisas. Eu não gosto de sair muito, e sim ficar dentro de casa.”
 
Pouca coisa mudou depois de vinte e poucos anos. Acho que só a esperteza eu perdi em algum momento da adolescência, mas o resto ainda está aqui. Eu passei a vida inteira lidando com depressão e transtorno de ansiedade (mais a primeira, que costuma me desencadear a segunda), mesmo antes de saber o que isso significava.

Essas são condições que muitas vezes atrapalham e muitas vezes ajudam a consumir entretenimento. Por um lado, eu sinto que o excesso de peso que minha mente dá ao julgamento de outras pessoas me torna mais empático a elas e isso é maravilhoso quando você quer se conectar com um filme, uma música, um jogo.

Por outro, a dificuldade de se desligar de passado e futuro dividem muito a atenção durante qualquer atividade. O sentimento é sempre de culpa pelo que foi e medo pelo que vai ser. O que é nunca é o bastante para acalmar os pensamentos.

Essa ansiedade se reflete muito em mim como uma, digamos, necessidade de completamento. Uma urgência por conclusões. Uma vontade incompreensível de ultrapassar linhas de chegada.

É isso que me faz ir no How Long to Beat saber quanto tempo falta no jogo. É isso que me faz ver a barra de progresso no filme ou contar quantas páginas restam no capítulo. É isso que me faz ignorar as side quests e correr para o próximo capítulo da história.

Por que eu sou assim? Eu não sei. Como posso resolver e mudar? Sei menos ainda. Mas foi exatamente um jogo de 100 horas em 2017 que me fez entender um pouco mais sobre a natureza do que eu sinto.

Stories of the Wild


The Legend of Zelda é uma franquia que tem um efeito curioso em mim. Sempre que eu estou jogando é como uma nostalgia do presente. Por isso eu não pensei duas vezes em escolher Breath of the Wild como meu primeiro jogo de Switch.

Já se passaram dois anos desde que tive essa experiência e ainda volto até ela de vez em quando em memória. Os lugares que passei, as surpresas, os desafios. Mas como um jogo de mundo aberto meio sem objetivos, sem nada de muito palpável para fazer, pode causar esse tipo de impressão? Talvez a resposta esteja exatamente nessa característica.

Eu lembro da primeira vez que o jogo realmente clicou comigo. Foi um pouco depois de sair do Grande Platô, a área inicial de BotW. Atrás de dois picos gêmeos, encontrei uma planície repleta de guardiões destruídos. Seguindo por aquele claro campo de guerra, alcancei Forte Hateno, uma fortificação que resistiu à batalha, mesmo com os seres autômatos escalando suas paredes.

Não havia ali qualquer indicação de história, apenas algumas linhas de NPCs. Isso não me impediu de ficar um bom tempo observando o local, tentando imaginar o que havia se passado ali. Se você leu meu último texto, é disso que eu falo quando falo em imersão. Não importam gráficos, importam as histórias — mesmo aquelas construídas dentro da sua própria cabeça.

Esse sentimento de amor pelo jogo se solidificou em mim um pouco além de Fote Hateno, em uma vila que ganhava o mesmo nome. Ali, pessoas seguiam suas vidas tranquilas com suas ambições pessoais, no mesmo local que anos atrás serviu de palco para uma batalha histórica entre o bem e o mal.

Quando penso sobre isso me dá um pouco de medo. Quantas vidas e histórias se passaram nos locais em que eu caminho? Quantas delas foram intensas e incríveis e agora não existem mais? Quanto eu me importaria com elas se soubesse?

Calma, não estou querendo te deixar pra baixo aqui!

(Desculpa, eu provavelmente te deixei pra baixo)

Eu só queria que você tivesse uma ideia do que eu senti enquanto jogava Breath of the Wild. Por que eu me senti imerso naquele mundo mais do que qualquer outro que já conheci. Mas acho que posso me explicar um pouco melhor.

Oasis of Time


Ao contrário da maioria dos jogos que já joguei, esse Zelda não traz muitos direcionamentos. Claro, existe um castelo corrompido por um ser imenso ali no meio ameaçando toda a existência como conhecemos.

Mas, cara, vai fundo. Relaxa. Vive o momento.

Foi assim que eu encarei minha jornada. A primeira vez que botei meus pés nas planícies centrais de Hyrule, já havia se passado 90 horas de jogo. Ao contrário de todas as vezes em que olhei para o objetivo final como uma busca desenfreada, dessa vez eu fui levado pelo mundo, levado pelo tempo.

O tempo é um deserto. Enquanto estamos nele, queremos sempre chegar em algum lugar. O calor é sufocante. Os pés queimam. Sem água não duramos muito.

O tempo é transitório e nós sabemos disso. Ficar parado significa a morte. Por isso pegamos essa imensidão de vida e criamos pequenos objetivos para não desanimar. Para não mirar o horizonte e esperar uma mudança no cenário. Pode ser a próxima duna, mesmo que o vento a redesenhe antes de chegar. Pelo menos eu irei chegar. Não é o que eu queria, não senti o que achei que sentiria, mas pelo menos cheguei.

Dentro dessa ideia, Breath of the Wild veio até mim como um oásis. Ele é uma parada na jornada. É a hora de Link reunir forças, olhar em volta. É a hora de eu parar para prestar atenção nas pequenas coisas, andar sem objetivo claro. Ganon vai esperar, não importa o quanto. O tempo vai esperar enquanto o tempo existir.

Parece besteira, mas um jogo, uma peça de entretenimento eletrônico, foi um catalisador importante na minha vida. Para entender que nem tudo precisa de objetivo, nem toda jornada precisa ser fechada, nem todo começo exige um fim.

A Link to the Present


Desde pequeno, eu sempre coloquei parâmetros irreais para declarar o sucesso de algo que faço. Lembro-me de uma vez, ainda na faculdade, que descobri o incrível mundo do videodesign e pensei: por que não fazer uns vídeos conceituais?

Foi isso que fiz, mas eu não consigo simplesmente fazer. Botei na cabeça que publicaria o primeiro em um site que nem lembro mais qual era e que eu teria milhões de visualizações e que seria famoso em 3 meses.

Acho que no total foram umas quatro visualizações e um comentário em inglês!

Foi: “what a waste of bandwith”.

Eu nunca mais fiz videodesign, obviamente. Não por que eu era ruim naquilo (lógico que eu era, quem é bom de primeira?), mas porque eu não dei a um interesse a oportunidade de crescer e se consolidar dentro de mim. Eu a transformei em uma fetch quest, que eu completaria entregando o vídeo na plataforma nichada da época. Ganhei nota F e nunca mais refiz.

Este é meu modo de operar: sem reconhecimento, tenho muita dificuldade de admitir algo que fiz como bom ou até concluído. É uma pena para aqueles dois livros horríveis guardados numa pasta bem obscura no meu computador.

Assim como Breath of the Wild me fez perceber que você pode ter vontade de explorar um mundo mesmo sem ter o que exatamente fazer nele, ele me fez pensar que eu posso explorar habilidades e interesses sem esperar muito também.

Este texto é uma consequência disso. Eu o consideraria um fracasso porque terá poucas visualizações, pelas críticas que receber, mas no momento só o considero um jeito legal de explorar meus próprios sentimentos.

(Droga, eu acho esse texto um fracasso mesmo assim, mas ignora)

The Legend of Zelda: Breath of the Wild foi um oásis em um deserto de jogos de mundo aberto para mim e me ajudou um pouco a criar oásis no meu próprio deserto. Vou chamá-los de meus Gerudos internos.

Sim, é um nome muito ruim.

Enfim, eu estou aqui fazendo exatamente isso, escrevendo estas palavras. Meu oásis no deserto que é o tempo: parece que não termina, parece que passa rápido demais, não me deixa muitas referências.
Mas enquanto eu puder descansar um pouco, tomar uma água e imaginar mundos com nada para fazer, pelo menos minha depressão e a minha ansiedade não serão um fardo tão grande para carregar.



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