Hellblade 2: uma saga sobre empatia

Imagem do jogo Hellblade 2, com a protagonista Senua em close no fundo preto


Mitos foram escritos na história por muitos motivos: para educar, para pôr medo, para inspirar, para justificar. Ou seja, mitos parecem muito terem sido feitos no passado como formas de entender a própria natureza humana, quando contar histórias era um dos poucos mecanismos que tínhamos para entender como a gente mesmo funcionava.

Não, eu não tenho capacidade acadêmica para aprofundar no ponto.

Mas, quando vemos tantos mitos usados em histórias de hoje, parece que uma boa parte dessa origem se perde. Fica apenas a casca: os nomes, os acontecimentos, talvez a grande moral vaga daquilo tudo. 

Ao ponto em que, hoje, a maioria das mitologias mais famosas – como grega e nórdica – são muito mais sobre o heroísmo e poderes legais do que sobre entender nossas relações com os outros e nós mesmos.

Felizmente, existem exceções. Hellblade 2: Senua’s Saga, é uma dessas.

A magia quando não havia ciência

Antes de falar especificamente sobre Hellblade 2, queria apontar como essa abordagem já existe na concepção da série e de sua protagonista Senua.

O conceito principal do jogo, incluindo seu design de som incrível, é o fato de que a jovem nórdica convive com vozes intrusivas que estão o tempo todo reforçando sua ansiedade, insegurança e necessidade de afirmação.

Como contam os próprios desenvolvedores, trata-se de uma condição de psicose, hoje amplamente estudada e com possibilidades de tratamento.

Porém, para alguém da época em que mitologia era a resposta para tudo, o resultado é óbvio: sua vila, seu pai e até ela mesma acreditam ser uma maldição.

Afinal, a maior maldição para nós humanos é precisar de respostas para todas as perguntas. Um trovão é um deus bravo. Uma colheita ruim é um deus insatisfeito. Um transtorno psicológico é uma punição divina.

O conceito foi bem explorado no primeiro Hellblade, Senua’s Sacrifice. Mas acho que foi com a sequência que a equipe conseguiu aprofundar ainda mais o fator humano intrínseco nos mitos contados por gerações.

Muito mais do que um machado que solta raio

Hellblade 2 é um jogo bastante simples em mecânicas. O que ele tem de espetacular em direção de arte, tem em simplicidade de combate, exploração, ações possíveis.

Muitas pessoas colocam isso como um defeito nele, e eu entendo quem pensa assim. Mas para essas, fico pensando se teriam o mesmo sentimento sobre a história do jogo se precisassem se preocupar com nível, equipamento, side quests. Nem todo jogo precisa ter tudo e ser tudo.

Ele é feito para que você consiga se imergir no mundo de Senua, não no mundo nórdico de séculos atrás – como um Assassin’s Creed, por exemplo. Hellblade é simples exatamente porque o universo mais interessante dele está dentro da protagonista, não em volta dela.

E é aí que a forma como a mitologia é tratada na série se difere mais de outras peças de mídia. Assim como surgiram no passado, essas histórias não servem para entreter puramente, mas para refletir.

As narrativas contadas na trama principal e nas recompensas de exploração estão sempre fazendo um paralelo com a própria vida de Senua, além de suas inseguranças e suas dúvidas sobre o caminho certo a seguir.

São contos sobre lutas, guerras, traições, mas que, principalmente no 2, não se preocupam nada em detalhes como quem perde e quem ganha, quem vive e quem morre. São histórias sobre como crescemos e sofremos como humanos.

Hellblade 2 e sua visão sobre empatia

O primeiro Hellblade é uma história clássica, de busca e vingança com um twist. Conta a jornada de Senua, exilada de sua vila, que vai até as portas da morte para resgatar seu amor Dillion.

O que mais se destaca nele é a solidão de Senua e seu sentido de culpa por algo que nem ela mesmo entende. O arco dela é de autoafirmação e amor próprio.

Em Hellblade 2, o estúdio Ninja Theory conseguiu algo difícil em sequências de qualquer tipo: manter o coração da personagem e da história ao aprofundá-la e expandi-la, sem que isso mude nossa visão daquele mundo. O segundo jogo é uma continuação natural, que repete temas e conceitos sem andar em círculos.

Não é um círculo, é uma espiral.

Toma, usei essa.

O jogo começa com Senua presa como escrava por vontade própria, querendo chegar até o lar dos escravagistas para matá-los. Como ela descobre, essas pessoas são ofertadas como sacrifício para aplacar a ira de um gigante.

Pela premissa, podemos pensar num caminho óbvio que o jogo siga. Um caminho de mortes e vingança que coube muito bem em vários jogos da série God of War.

Mas não, dessa quebra de expectativa vem o maior trunfo de Hellblade 2. Uma jornada que seria de vingança se torna sobre empatia.

Dá até para argumentar que as duas coisas são totalmente opostas. Vingança é sobre morte, empatia é sobre vida. Vingança é sobre igualar, empatia é sobre somar. Vingança é o encontrar de espadas, empatia é o encontrar de pontos em comum. Vingança é tomar, empatia é conceder.

Ao longo do jogo, tudo o que Senua aprendeu no primeiro é usado para seu crescimento. Após afastar todas as pessoas com medo de machucá-las, agora ela busca nos outros ajuda. Confiança. Ela entende que nós seremos sempre limitados sozinhos.

Da mesma forma, ela muda sua percepção sobre como resolver conflitos. Embora ainda haja combate, ele nunca é a resolução como era no primeiro. Para derrotar gigantes, Senua precisa entender como foram criados, quem eram antes e, simbolicamente, seus nomes.

Esta é a parte mais interessante de Hellblade 2. Derrotar o inimigo é conhecê-lo. É entender suas razões – sem absolvê-lo da responsabilidade, claro. É reconhecer, acolher. É ouvir.

E, ao longo do jogo, Senua percebe que entender o outro é entender a si mesma – a origem dos mitos como eu disse lá em cima. Quando você pratica empatia, você se aproxima dois passos da outra pessoa: um que você dá e outro dela.

Isso é muito bem explorado em um trecho do jogo:

Conhecimento tem um preço. Há sempre uma parte de você que irá mudar, uma parte que irá escurecer. E uma parte que você perderá. 

Ou seja, mudar é ser mudado. É uma lei não escrita que governa a humanidade desde o início. Desde que os mitos nasceram para explicar nossa relação com o que somos e o que está a nossa volta.

Hellblade 2, por falar sobre isso, me mudou também. Me fez pensar mais sobre o que posso fazer pelos outros e algo ainda mais difícil: como aceitar que precisamos sempre de ajuda.

Uma passagem que me impactou muito no jogo foi quando a Sombra, antagonista de Senua, diz sobre como sermos falhos é exatamente no que nos torna humanos.

O que a voz grave fala faz a gente pensar. Existe algo de sombrio em nós, um lugar que não pensamos sobre até que sejamos colocados nesta situação: quando uma pessoa que amamos está em perigo, talvez seremos capazes de fazer qualquer coisa para protegê-la. Mesmo algo cruel. Algo moralmente incorreto.

Pensando assim, no frio da distância, negamos. Somos muito racionais em como prevemos nossas ações. Mas e se um dia você tiver que proteger alguém que você ama? Seria capaz de fazer uma atrocidade?

Felizmente, para a maioria de nós, nunca precisaremos saber essa resposta.

Já joguei muitos jogos de dezenas, até centena de horas que evaporaram da mente uma semana depois. Hellblade 2, com suas 7 horas de duração, vai ficar em mim por muito, muito mais tempo. 




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