Escolhidos, infalíveis e especiais

Cena do filme Matrix, com Morpheus dizendo "He is the one""


Imagine você vivendo sua vida como todos vivemos: tendendo a enxergar a rotina como cada vez mais desinteressante. O trabalho parece estagnado, a vida amorosa meio complicada, a autoestima abalada, o futuro muito incerto. Basicamente, abertura de Friends.

Nossa, eu achei tãããão difícil imaginar, sabe?

Agora imagine você, pensando em tudo isso, recebendo uma visita inesperada. O interfone toca e você pensa, "putz meu ifood chegou". Mas aí você abre e é um ser mágico com uma carta. Você faz parte da longa família de magos poderosos de um reino distante e, em todo esse tempo, você tinha capacidades ilimitadas parte de uma profecia de um ser capaz de salvar o mundo inteiro e não sabia.

Você recusaria o convite? Eu não.

O meu problema com escolhidos

Acho que depois de milhares de anos de humanos contando histórias, podemos considerar que o protagonista escolhido é um clichê. A própria base de uma profecia tradicional é a ideia de que existe alguém especial para cumprir uma jornada ou tomar uma decisão que vai fechar um ciclo previsto de antemão.

Até hoje, esse é um mecanismo de roteiro muito utilizado, principalmente em histórias de fantasia. É capaz de abrir um espaço mais fácil, um atalho para a introdução de alguém que em uma cena está em casa como todos nós e na outra está soltando fogo pelas mãos.

E olha só, eu não tenho problema com o tropo em si. Como eu disse, é um modelo dos mais antigos de história — pense no Rei Arthur, por exemplo. E é um daqueles que tem um grande valor de escapismo e entretenimento para todos nós.

A ideia de encontrar seu verdadeiro chamado, de descobrir um poder interno escondido para lidar com seus medos e dificuldades, é muito atrativa. Ainda mais em uma sociedade presa em um ciclo de derrubar sua autoestima com uma mão para vender um produto que "te faz especial" com a outra. Nós somos condicionados a esperar que a vida nos transforme em especiais do dia para a noite. É a base que alimenta o consumismo moderno.

Mas isso não significa que essas histórias sejam ruins, muito pelo contrário. Quando bem-feita, esse tipo de história tem papel inspirador e até de reflexão sobre esses mesmos terrores que nos afligem. Na maioria das vezes, é uma mensagem de esperança. E claro, é satisfatório ver a pessoa improvável que surge para gerar uma derrubada improvável de status quo.

Eu fico nessa dualidade quando penso em histórias com escolhidos, acho que muito pelo fato de que a forma como o tropo é utilizado é mais importante do que o mecanismo em si. E existem muitos bons exemplos por aí.

Para citar alguns mais famosos, temos Matrix, no qual o fato do protagonista ser escolhido — ele é chamado literalmente de Chosen One — torna-se uma reflexão sobre seu próprio mundo. Um meta-escolhido, talvez?

Dá para citar também Jogos Vorazes, em que a protagonista ativamente escolhe o papel para ela, mas depois perde o controle sobre as próprias decisões e vê sua imagem de escolhida ser utilizada por outras pessoas como propaganda.

Geralmente, o que esses casos bons têm em comum é uma profundidade maior na relação entre as expectativas da escolha e os sentimentos do escolhido. Por mais poder que a personagem tenha, existe um conflito que não é resolvido em quem solta o maior raio mágico. Essa tensão entre profecia e vontade está sempre presente.

O que me leva ao meu real problema com escolhidos. Não é o tropo em si, mas sua tendência muitas vezes a não conseguir equilibrar essa tensão. E, daí, tornar o escolhido tão especial que não há mais conexão com nosso lado cansado da rotina.

O meu problema com protagonistas infalíveis

Toda essa volta que eu dei até agora foi para chegar aqui. Quando se escreve um protagonista, na maioria das vezes a ideia é criar uma conexão dele com o leitor/espectador/ouvinte. Se a personagem é poderosa, a pessoa sente esse poder nela. Se a personagem tem dúvidas, essas dúvidas transbordam para ela.

Bom, pelo menos comigo é assim. Mas como eu vou ter empatia com alguém que não erra se eu erro o tempo todo?

A primeira vez que eu me senti incomodado com um protagonista infalível foi vendo o filme O Jogo do Exterminador (Ender's Game). Já digo que não li o livro, então não posso dizer o que é parte do material original e o que é adaptação. Espero que no livro seja bem melhor.

A história segue o mesmo mecanismo de roteiro de escolhido, mas em uma roupagem menos mágica. E algo me incomodava desde o início, mas que só fui perceber para lá do meio do filme: tudo dava certo para o protagonista. Qualquer conflito era resolvido imediatamente em seu favor, nenhuma situação criava algum embate interno de ideias, não havia hesitação. Mesmo que, no fim, exista uma reflexão retrospectiva com essa característica, a experiência já estava indiferente demais até ali para eu me importar. 

Outro exemplo disso é na verdade a história que motivou este texto: O Nome do Vento, de Patrick Rothfuss. Neste caso, não há escolhido na história, mas um protagonista que irritantemente não falha.

Imediatamente quando eu comecei a ler O Nome do Vento, eu tive vontade de fazer um post sobre ele, um bem mais positivo do que este. Para mim, a coisa mais especial nessa história é como ela usa a tradição das lendas e da contação de histórias como parte do próprio mundo. É uma lenda sendo contada pelo herói que a viveu. Esse seria o tema principal.

Bom, é um livro de 900 páginas. Foi tempo o suficiente para que esse meu encanto inicial esfriasse pela própria história do protagonista. Eu ainda abro um espaço para dúvida, de que seja o caso de um narrador não-confiável e que os próximos volumes da série abordem essa questão, mas a constante infalibilidade de Kvothe esfriou toda a empatia que eu cultivei por ele no início.

Como protagonista infalível, Kvothe aprende tudo rápido demais e da melhor maneira possível. Sempre tem saídas para situações difíceis. A parte mais irritante: as pessoas insistem em gostar, aplaudir, admirar, valorizar Kvothe mesmo quando ele claramente está passando por cima dos interesses de todo mundo em volta dele.

O próprio texto tem um trecho que simboliza perfeitamente essa característica, quando o protagonista diz: “E de repente, sem a menor dificuldade, compreendi o que tinha que fazer”. Essa frase está lá, dessa forma, saindo da boca dele. Não dá para ser mais simbólico que isso.

Talvez seja algo comigo, não sei. Mas foi perceptível o meu interesse esfriando a cada nova situação resolvida de repente, sem a menor dificuldade. Eu senti que essa linha entre me fazer sentir poderoso por meio do protagonista e me relacionar com seus conflitos foi perdida.

E eu não estou falando que protagonistas poderosos são um problema. A série de mangás e anime One Punch-Man é um exemplo: um personagem que derrota qualquer desafiante com um soco. Não dá para ser mais forte do que isso. E, ainda assim, ele não é infalível. Seus conflitos estão em sua relação com outros personagens e com o fardo do próprio poder. Está em coisas que conseguimos nos relacionar, como autoestima, expectativas sobre a própria vida, o tipo de coisa que pensamos todos os dias.

No fim, eu fiquei triste de ter sentido isso. Não digo que toda narrativa tem que ter algum sentimento profundo para ser legítima. Histórias podem ser só histórias e isso explica o sucesso de uma tão bem feita como o O Nome do Vento. É que, mesmo querendo só escapismo e diversão, eu espero que possa ter no que me segurar para entendê-lo e torcer por ele. Com tantas outras histórias por aí querendo ser lidas, vou só assumir que Kvothe fez tudo certo e se deu bem no final.

Como já diria uma famosa filósofa, eu não sou obrigado a ter empatia.





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