No fim de agosto de 2016, meu sobrinho fazia aniversário na garagem do prédio improvisada como salão de festas. Havia uma grande mesa com o bolo e doces e toda a decoração temática para bater fotos. Em volta, as mesas de plástico alugadas, alguns brinquedos, uma caixa de som tocando música infantil, animadoras fazendo pinturas no rosto das crianças.
Eu e a Mari também entramos na fila para pintar os braços. Meus pais estavam lá, primas e tias. Eu usava uma camisa polo listrada de tons de verdade que estava mais folgada que o de costume, um número maior do que deveria. Eu estava muito incomodado com o meu cabelo, o penteado não estava exatamente ficando no lugar que eu queria.
Mas nada disso fez muita diferença porque eu me diverti muito naquele dia. Nós íamos em turnos pegar salgadinhos e doces e refrigerante e estava tudo delicioso. No fim da festa, depois de já nos despedirmos e caminharmos em direção ao carro, eu comentei com alguém — não sei exatamente quem — que eu havia comido tanto que estava até um pouco tonto, formigando pelo corpo inteiro. Mas não era uma sensação ruim de passar mal. Era satisfação.
Por que eu lembro com tantos detalhes dessa noite em 2016? É porque essa foi a última vez em que comi doces desse jeito, sem me preocupar com o quanto colocava na boa.
Desculpa, isso soou mais melancólico do que deveria. Mas é a verdade, fazer o quê.
Primeiros sintomas da diabetes: o efeito trakinas
Minha vida inteira eu sempre fui mais magro do que deveria, mesmo sendo bastante sedentário. Ali por 2015, 2016, começou a bater em mim a realização de que eu precisava fazer algo para ser mais saudável. Era os trinta batendo à porta, provavelmente a primeira crise de idade do ser humano. Exercício físico, melhorar a alimentação, essas coisas.
Por volta de agosto de 2016 eu estava fazendo caminhadas com certa frequência, comendo bem como sempre comi e bebendo bastante água. Eu realmente não tinha do que reclamar.
E a consequência de beber muita água é ir muito ao banheiro, certo? Eu estava indo muito. MUITO. E com isso bebendo cada vez mais água, afinal eu acostumei meu corpo e por isso a boca fica seca toda hora. É... normal, né?
O primeiro sintoma da diabetes é sempre o efeito trakinas. Vou muito no banheiro porque bebo muita água ou bebo muita água porque vou muito no banheiro?
Esse dilema demorou algumas semanas até que os sintomas mais consistentes surgissem: fome interminável e, mesmo comendo sem parar, perda de peso considerável. Em um mês, perdi aproximadamente 10kg, mesmo comendo o dia inteiro. Algo estava errado e eu fique literalmente só pele e osso. Era hora de ir ao médico.
Diabetes Tipo 1: por que meu corpo me odeia
Lembro que fui em uma clínica geral para fazer um check-up. Assim que comecei a relatar os sintomas ela perguntou: "Tem histórico de diabetes na família?". Depois do tanto que já tinha pesquisado no Google, aquela foi a confirmação do diagnóstico antes dos resultados.
E os resultados vieram como se esperava. A glicose em jejum estava em 300mg/dL — o normal, mesmo de barriga cheia, é 80. Depois de mais alguns exames, foi confirmada a DM1. Mas o que é exatamente esse tipo de diabetes?
A diabetes é uma doença na qual o corpo de uma pessoa perde a capacidade de metabolizar o açúcar que vem da comida. Tudo que você come é quebrado pelo sistema digestivo em pedacinhos até sobrar a glicose, o combustível das células. Sem ser consumida, a glicose fica ali vagando, assombrando suas veias. A longo prazo, os problemas circulatórios podem ser bem graves.
Isso acontece de duas formas. A mais comum é a Diabetes Mellitus Tipo 2 — aquela resultado de hábitos alimentares, físicos e a idade. Nela, suas células convivem com tanta glicose no sangue o tempo todo que criam resistência a ela, até o ponto em que a insulina que se produz é insuficiente para o sistema funcionar direitinho. A insulina é o hormônio que faz essa ponte e permite a glicose atravessar a parede da célula para ser consumida.
Mas existe uma diabetes mais rara, a Tipo 1. Nela, em vez de a insulina produzida ser insuficiente, o pâncreas para de produzi-la parcialmente ou completamente.
É uma doença autoimune. As células responsáveis pela produção de insulina são atacadas pelos próprios anticorpos e destruídas como se fossem uma ameaça.
É uma forma bem complicada do meu corpo dizer que me odeia.
Como toda doença autoimune, ninguém sabe exatamente o que causa o problema. A grande maioria dos casos se desenvolve ainda na infância, mas lá estava eu, adulto feito, tendo que lidar com isso.
Vivendo com a DM1: é uma rotina chata, mas é só uma rotina
O diabético tipo1, como é o meu caso, é insulinodependente. Ou seja, a única forma de eu metabolizar a comida é aplicando insulina de forma externa. São 4-5 agulhadas por dia e, ainda bem, a agulha subcutânea mal dá para sentir.
Fora isso, curiosamente, levo uma vida normal. Posso comer o que quiser, desde que faça o cálculo da quantidade de carboidratos e aplique insulina suficiente para manter o melhor nível de glicose possível. Esse controle é com mais 3 agulhadas, para utilizar o glicômetro em horários-chave e corrigir quando precisar.
Tirando a atenção que tenho que ter para qualquer coisa que irei comer, é só mais uma rotina. Como escovar os dentes, como lavar as mãos. Três vezes por anos preciso fazer o controle com exames e médico, mas são outras coisas que também acabam se encaixando na vida. É impressionante como a gente se adapta a muita coisa.
Claro, eu tenho o privilégio de ter acesso fácil à insulina pelo SUS. Também o controle alimentar facilitado por trabalhar em casa. Muita gente não tem as mesmas chances e não dá para cobrar atenção o tempo todo. É cruel exigir que as pessoas tenham um controle constante de algo que é uma função básica da existência humana. Ainda mais tendo TANTA coisa gostosa por aí.
Por enquanto, eu consigo manter a minha disciplina, com umas escorregadas aqui e ali. Mas, como todo mundo, tem dia que eu só quero que tudo exploda incluindo eu mesmo.
Algumas pessoas podem ter o privilégio de encontrar um medicamento que funcione, uma terapia que encaixe. Outros não tem nem a chance de tentar. E quando alguém me indaga sobre isso, não dá para simplesmente falar "eu sou diabético" e ser imediatamente entendido, respeitado. Se eu falar "hoje não estou muito para conversa", ninguém vai se desculpar e me dar um espaço. Não vão aceitar que, assim como meus anticorpos, às vezes meus neurônios me odeiam também.
É cruel, vira rotina. E é impressionante como a gente se adapta a muita coisa.
PS.: Se você teve a impressão de que falta uma conclusão no pensamento, não é só você. Eu também não sabia como terminar ou qual foi a razão no desvio de assunto no fim do texto, mas preferi deixar como ele me veio à cabeça. Se um dia fizer sentido, prometo que volto no assunto.
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