Eu sempre achei a arqueologia um processo fascinante de montar um quebra-cabeças e recontar uma história. De entender um acontecimento não pelo que se vê dele, mas pelas consequências que ele deixou após terminado.
Recentemente, eu estava arrumando meu armário e encontrei uma caixa especial. Dentro dela, dezenas de cópias de um livro meu escrito em 2013, publicado por uma editora em 2016. Foi uma publicação semi-vanity, em que paguei parte dos custos e fiquei com 100 cópias para vender.
É óbvio que não vendi mais do que 20 e o resto está até hoje aqui ocupando espaço.
Mas dessa vez, em vez de só ficar triste, resolvi fazer uma arqueologia de mim mesmo. Como será que o Guilherme de 2020 enxergaria o Guilherme de 2013? Este texto todo é a impressão que tive sobre como as coisas mudam tanto em alguns anos.
O Guilherme até 2013
A primeira vez que me lembro de sentir algo que hoje possa reconhecer como depressão vem de muito cedo. Eu mesmo não consigo precisar o tempo, apenas de que tinha menos de 10 anos quando tive que lidar com isso.
E a verdade é que nenhuma criança de 10 anos sabe lidar com isso.
Venho de uma família que sempre me apoiou e me suportou em tudo que me foi necessário. Sempre tive o que queria dentro de um limite razoável de classe média. Nunca sofri bullying direto e persistente, nunca entrei em brigas.
Mas, por outro lado, também nunca tive muitos amigos e sempre fiz esforços ativos de autossabotagem para me afastar deles. Enquanto crescia, passei a ficar cada vez mais em casa, fugindo de encontros com parentes, tentando interagir o mínimo possível com as pessoas.
É assim que a depressão tomou conta da minha vida por anos. Não como um peso, mas como o meu normal. E o Guilherme de 8, 10, 15, 18 anos se acostumou até bem demais com essa letargia.
O problema é que uma panela aguenta a pressão sem problemas, mas a borracha com o tempo se desgasta. A trava cansa. O pino fica pesado demais para ele próprio. Nenhuma panela consegue segurar a pressão para sempre.
O meu momento de explodir tem muito a ver com esse histórico estável na infância e adolescência. Depois de um período final de faculdade esmagador, que me trouxe também a ansiedade, cheguei em 2010 com um diploma e com uma constatação inevitável e terrível: eu agora deveria seguir em frente com as minhas pernas.
Isso significava lidar com a depressão, tão presente e familiar que virou o que eu era.
2010 foi o ano em que eu quebrei. Foi o ano em que implorei por ajuda médica em meio a uma crise de choro. Com certeza o pior momento da minha vida, o fundo do poço.
E eu tenho a sorte (ou maldição) de ter um registro arqueológico da minha tentativa de escalar para fora dele.
O Guilherme de 2013
O meu tratamento com antidepressivos e sessões de análise durou mais ou menos 2 anos. É até simbólico que eu tenha terminado esse período falando que ia marcar a próxima sessão e nunca mais dei notícia, da mesma maneira que afastei tantos amigos e parentes na adolescência. Algumas coisas nunca mudam, parece. Mas ao mesmo tempo mudam demais.
Foi nessa época que tive a oportunidade de me conhecer melhor e descobrir o tanto que eu gostava de escrever. Um apoio que veio do psicólogo, mas também da pessoa mais importante da minha vida que nunca quer ser mencionada nas coisas porque se parece até demais comigo. Sim, Mari, eu estou falando de você.
A ideia era escrever o que eu estava sentido, pelo que estava passando. Uma lição que levo até hoje para a minha vida de que nós precisamos nos expressar sempre, não importa como, desde que seja com honestidade própria.
E então vieram os contos, vieram as ideias, vieram as histórias. Hoje, eu poderia (se um dia tiver a coragem) reler todos esses textos desde o início e criar uma história de mim mesmo, com toda a jornada de abrir feridas e cicatrizá-las daqueles anos tão difíceis.
Mas, quando achei a caixa e decidi reler 'Tudo o que inexiste', o que eu encontrei foi o material perfeito para isso. Em 2013, eu já tinha uma facilidade maior em expor ideias e já havia passado pelo processo que, eu posso dizer com segurança, salvou minha vida. Por isso mesmo, foi o melhor conteúdo da época para entender o que eu estava passando.
Essa história de 100 páginas, 22 capítulos, é um registro perfeito da transição do Guilherme antes e depois de 2013.
As capas de Tudo o que Inexiste |
Eu nunca consegui dizer exatamente sobre o que é 'Tudo o que Inexiste'. É uma história sem trama, sem conflitos, uma coleção de ideias sobre mim e sobre a vida que tentei colar em uma sequência de eventos inspiradas nas imagens das cartas de tarô. Sim, é aleatório desse jeito.
E veja bem, não é a pior coisa do mundo. Lendo novamente, eu percebi que dou menos crédito para a construção dele e até em parte o conteúdo do que ele merece. Só que ele também evidencia muito das coisas de ruim que o Guilherme antes de 2013 teve que deixar para trás.
O maior exemplo disso é a forma leviana como eu falo sobre suicídio, principalmente no início do livro. Algo que tinha até certo fundo de verdade sobre o quão fundo eu me enfiei na depressão, mas que é muito mais sobre o adolescente contrariado padrão, presunçosinho e niilista, achando que está muito acima dos medos humanos.
Esse é o motivo principal pelo qual não me sinto mais à vontade para comercializar essa história hoje.
Mas foi realmente muito legal perceber como isso tudo fez parte de uma caminhada em que não tinha como dar passos maiores do que a perna. A história é uma montanha-russa de uma pessoa transitando entre desesperança e cinismo para a humildade e aceitação.
Existe até uma diferença clara dentro da estrutura do texto. Os pontos em que minhas ideias mais genuínas brilham é quando saio da história que estava tentando contar (muito mal) para conversar com o leitor. É repetitivo, é desnecessário, mas em muitas vezes funciona.
E é também um caminho linear. Afinal, eu escrevi a história do início ao fim sem planejar antes. Sua linha é exatamente a linha do que tive que fazer. Me machucar de propósito, entender por que estava fazendo isso e então deixar cicatrizar.
Eu não posso ignorar a impressão que me passou do Guilherme daquela época: um homem branco auto-intitulado nerd que se achava melhor por "saber mais" que as "pessoas comuns", tão presas em suas vidinhas corriqueiras. Eu odeio esse Guilherme ainda bem que ele pegou fogo lá em 2010.
Mas ao mesmo tempo tenho compaixão por esse lado no passado. É ele que me trouxe até aqui. E em toda a inconsistência de 'Tudo o que inexiste', é possível ver claramente o conflito na cabeça do Guilherme de 2013, na vontade dele de se libertar daquilo. Felizmente, deu razoavelmente certo.
O Guilherme após 2013
Muita, MUITA coisa mudou de 2013 para cá. Eu consegui transformar a escrita em um sustento na medida do possível, embora ainda seja pouco. Eu aprendi a lidar e passar pelas crises depressivas, que nunca vão me abandonar. Eu me vi diagnosticado com Diabetes Tipo 1 e num plot twist inesperado fiquei muito mais saudável depois de contrair uma doença.
A ansiedade continua, a incerteza continua. Melhorei um pouco a habilidade de escrever, mas ainda tenho muita dificuldade em transformar premissas e ideias em histórias. Estou aos poucos aprendendo a me expor mais como estou fazendo agora mesmo.
Ou seja, sigo uma caminhada que não termina até que ela termine. Às vezes é mais difícil, às vezes não. E acho que era isso que eu estava tentando dizer lá atrás, mas ainda não tinha a capacidade nem a vivência para ser claro o suficiente.
Terminando este texto, a única coisa que me vem a cabeça é como eu vou olhar para trás daqui 10 anos e pensar no Guilherme de 2020. Eu tenho certeza que o impacto será parecido. Eu já disse, tudo muda. Eu disse isso ali em cima e disse também lá em 2013, em um trecho de 'Tudo o que Inexiste' que deve ter me vindo durante o processo de cicatrização das feridas:
"O mesmo lugar nunca estará igual duas vezes, mesmo que nada tenha aparentemente mudado. Isso porque você muda, o tempo todo."
Eu estou curioso e com medo em ver o que vai mudar daqui para a frente, mas no mesmo livro eu me dei a solução:
"Quando você se notar diante de um ponto de mudança em sua vida, respire fundo e feche os olhos".
Acho que vou fazer isso agora mesmo.
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