Estou pensando em Estou pensando em acabar com tudo

Cena de "Estou pensando em acabar com tudo"


Este texto contém potenciais spoilers para o filme "Estou pensando em acabar com tudo" e o livro que o originou. 

 

Escrever muitas vezes é um ato de familiaridade. Como passamos nossa vida inteira contando histórias, acabamos nos sentindo muito confortáveis com personagens recorrentes, tramas em fórmulas, resultados previsíveis. 


Veja bem, isso não tem nada a ver com qualidade. Algumas das histórias mais incríveis já contadas possuem os mesmos elementos narrativos de desastres inimagináveis da literatura humana. (eu sei disso porque escrevi algumas dessa segunda categoria)


Mas esse conforto é exatamente o trunfo de quem sabe brincar com expectativas. É quando ficamos mais desconfortáveis que paramos de verdade para prestar atenção e refletir sobre a relação entre o que estamos consumindo e nossa própria natureza. 


É um sonho escrever algo assim um dia. 


A última história a me causar esse exato sentimento foi 'Estou pensando em acabar com tudo'. Desde então, estou pensando em estar falando sobre alguns pontos que estou ruminando sobre ele nas últimas semanas que estou vendo/lendo. 


Confuso? É eu fiquei também. Mas vem comigo. 


Como 'Estou pensando em acabar com tudo' subverte o papel do protagonismo 


Na maioria das histórias é bem fácil determinar quem é protagonista. Geralmente é quem narra em primeira pessoa ou sobre quem se refere ao se narrar em terceira pessoa. 


Certo? 


Foi com essa ideia que entrei de cabeça no filme 'Estou pensando em acabar com tudo' dirigido e co-escrito por Charlie Kaufman. Essa é daquelas obras que em 20 segundos de trailer você se vê fechando o vídeo desesperado para não ver mais nada. Um mistério, uma aura que parece precisar ser preservada ao máximo para a imergir como passageiro naquele carro de dois namorados no meio da neve. 


O filme, assim, como o livro, começa com um monólogo da jovem que vai conhecer os pais do namorado, Jake, depois de alguns meses de relacionamento. Mas tem um porém. Enquanto parecem estar prontos para dar um próximo passo de comprometimento, ela se pergunta se não deveria terminar de vez. 


O que estendemos daqui é uma expectativa de trama. Um conflito muito instigante, mas que não passa muito disso. Mas talvez seja exatamente essa premissa a verdadeira responsável por tornar o que vem a seguir tão especial. 


Existem algumas diferenças interessantes entre livro e filme, que mostram novamente o talento já bem conhecido de Kaufman e daria um ótimo ensaio sobre adaptação de mídias por alguém que saiba fazer isso. 


(Aliás, queria abrir parênteses para dizer como o filme conseguiu dar um valor tão incrível à parte final da história, que no livro é uma grande decepção em sua exposição desnecessária e banalidade do que acontece. É realmente uma escolha lamentável de final) 


Mas, independentemente de como a história é contada, o maior encanto dela está na descoberta que fazemos ao longo do tempo. 

 

 

 

 

Sério, se você não quer qualquer tipo de spoiler, melhor ver o filme antes. 

 

 

 

 

Eu avisei. 

 

 

 

 

Com o passar do filme e a relação entre os personagens, começa a assentar em nós uma sensação estranha — muito além da edição autoral e da viagem sobre envelhecimento. 


O que notamos é que a protagonista que acompanhamos até agora não tem nome. A presença dela e a presença de Jake não se encaixam exatamente na lógica que tentamos formar, na cronologia do que está sendo contado.


Meu encanto com essa história veio neste momento: quando clicou em mim que o protagonista é Jake. Sua namorada é uma personagem com um plano de fundo próprio, impressões próprias e personalidade, porém o propósito dela ali é contar a história de uma pessoa crescida com sonhos grandiosos, que esfriaram lentamente pela inércia da vida comum. 



Esse é o tipo de quebra de expectativa que transforma uma experiência. A familiaridade é importante para dar brilho aos momentos em que é quebrada com sucesso. São os detalhes narrativos que dão um tempero único para um prato comum.


Sim, eu fico impressionado, tá? (Mesmo que o fim do livro meio que estrague tudo isso no final e eu recomende muito, mas muito mais o filme)


Sempre que eu tento isso exagero muito no tomilho. Fica tudo com gosto de tomilho. Minhas histórias são tomilho, tomilho e tomilho.


Voltando ao assunto.


Como o somos formados pelas opiniões de outras pessoas


Por que essa subversão específica me impactou tanto? Foi nisso que fiquei pensando uns bons dias enquanto revivia a história em outro formato. A única meia conclusão que consegui chegar ao longo do filme (o livro passa outra energia que já deve ter percebido que não gostei) é como ele teve um efeito positivo em domar um pouco o meu próprio ego.


É da natureza humana nos projetarmos em protagonistas da mesma maneira que acreditamos ser protagonistas das nossas próprias vidas. Faz sentido, não faz? O mundo acontece sobre o meu ponto de vista. Eu sou especial. 

Essa ideia que parece tão simples nas nossas cabeças é exatamente o que torna 'Estou pensando em acabar com tudo' uma pequena aventura de autoconhecimento. Só por que eu narro o meu mundo isso significa que eu sou o centro dele?


A própria forma como Iain Reid constrói essa narrativa — e que passa consequentemente para o filme que ajudou a roteirizar — tem muito a ver com essa noção. 'Estou pensando em acabar com tudo' é sobre Jake. Porém, na história, Jake existe apenas como impressões de sua namorada sem nome.


(Sério, a gente precisa concordar que o final do livro é raso e completamente sem tom para funcionar isso aqui. Segue comigo)

 

É uma forma de tentar tornar tangível, nem que seja um pouco, a ideia de que nós apenas somos em relação aos outros. O julgamento dos outros. Nós somos a comparação com outros. Nós terminamos onde outros começam.


Existe uma noção de super individualidade na sociedade de que podemos ser facilmente autossuficientes, inclusive emocionalmente. De que basta força de vontade ou um café a prova de balas para criar nossas próprias imagens como sempre idealizamos.


Nessa história, no entanto, fiquei pensando sobre como eu estava conhecendo Jake. Não como ele se considera, mas as opiniões sobre ele de outras pessoas. Inclusive quando o próprio fala sobre sua vida. Jake fala sobre impressões que teve de impressões de outras pessoas sobre ele. (Sim, relê a frase de novo que faz sentido tá!)


O que nós somos é um emaranhado incompreensível de opiniões. Das nossas, das dos outros, das que damos achando que é o que os outros querem ouvir.


No próprio livro, a namorada de Jake se questiona sobre o assunto, se sozinhos somos a versão mais pura de nós mesmos. Acho que é impossível responder isso com objetividade, mas eu tendo a discordar.


Desde bebê já nos definimos por emular comportamentos e testar reações. Sem entrar na discussão de quem nasce bom ou mau, é difícil acreditar que seja possível criar meu eu ideal se me preocupo tanto com o que vão pensar de mim.


Talvez sozinho em casa com as cortinas fechadas? Talvez nem assim.


Veja só o tanto de caraminhola (essa é antiga) que veio na minha cabeça por uma simples subversão de narrativa. É mais um alerta para tentar melhorar meu próprio trabalho — como discussões podem ser levantadas pela simples mudança de perspectiva sobre elementos familiares.


Uma reflexão da namorada no começo do livro resume bem tudo isso:

 

Acho que muito do que aprendemos sobre os outros não é o que eles nos contam. É o que observamos. As pessoas podem nos contar o que quiserem. Como Jake apontou certa vez, sempre que alguém diz: "Prazer em conhecê-lo", está na verdade pensando em algo diferente. Fazendo algum julgamento. "Prazer" nunca é exatamente o que a pessoa está pensando ou sentindo, mas é o que dizer, e escutamos. 

 

Ou seja, somos todos opiniões. De nós mesmos, dos outros, do que pensamos ser e da imagem que queremos passar. Todas essas perspectivas interagem entre si de inúmeros formas e o resultado pode ser completamente diferente a partir de milímetros de conflito.


Talvez o narrador confiável de verdade nunca exista, mesmo que estejamos contando uma história nossa para nós mesmos. 




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