Uma carta de amor a Dark Souls 2

Cena de Dark Souls 2 em um diálogo com a personagem Lucatiel


ATENÇÃO: Este texto pode ter gatilhos. Se você está em um momento sensível para discussões mais existenciais ou à depressão, talvez seja melhor deixar para ler outra hora.

ATENÇÃO 2: Se você considerar que Dark Souls tem história, este texto pode conter spoilers da série.

Eu sempre enxerguei a trilogia Dark souls como uma história sobre entropia. Sobre o destino que leva a ordem a se dissipar com o tempo e nossas tentativas desesperadas de negar que isso seja inevitável.

É um fascínio pela tragédia. Uma melancolia com um fundo de beleza como quando temos que nos despedir de alguém que gostamos muito.

Mas existe uma diferença fundamental que separa o tão mal falado Dark Souls 2 e os outros jogos da série. Nele, a entropia não é sobre o fim do universo e todas as coisas. É sobre como cada um de nós é seu próprio universo que se dissipa. Tomara que eu consiga fazer jus ao sentimento nesse texto.

O pianinho de Majula

Nunca vi nada que traduz melhor a melancolia dentro de um videogame do que a vila de Majula. Um eterno pôr-do-sol e um horizonte infinito. Um lugar seguro que abre caminho para todas as possibilidades, mas que faz ser muito difícil ter coragem de trilhá-los.

A própria música ali compreende esse sentimento. Um piano arrastado, com pausas e suspenses diferentes a cada nova nota. Na exata linha que separa beleza e cadência de ansiedade e desespero.

Esse seria o momento da resenha em que eu falaria sobre o plote principal da história. Sobre uma invasão de gigantes e a ganância de um rei que o fez se tornar o que mais temia. Sobre a vontade de uma rainha. Mas se fosse para resenhar o jogo eu estou mais de 5 anos atrasado.

O que eu quero falar, então, é sobre um elemento central na história. Algo que assim como o universo se dissipa, se transforma e se perde.

Nossas memórias.

Muito mais do que o destino de um reino ou o apagar de uma chama, a melancolia nos personagens de Dark Souls 2 vem de uma certeza: gradativamente suas memórias irão sumir. E o que se torna alguém que não tem mais suas memórias?

A analogia desse jogo, do portador de uma maldição, é muito mais interessante e delicada do que falar simplesmente de um ser que perdeu sua humanidade.

Em DS2, o enfoque é de uma pessoa que perdeu o contato com quem era por meio da perda de suas memórias, não pela ideia abstrata de uma essência a se esvair.

Um Hollow, ou Vazio, é alguém vazio de suas próprias memórias. Lembro que dá primeira vez que joguei, esse elemento foi avassalador. Foi de verdade um gatilho de depressão para mim porque traz a fantasia para muito perto da realidade, mais do que gostamos de admitir.

O medo do esquecimento


Agora você deve estar se perguntando: por que você gosta tanto de algo que te dá depressão?

Olha… eu não sei. Existe algo de belo em como o ser humano tem fascínio pelo desconhecido, um terror irresistível, uma vontade de pular no vazio.

A vez em que eu mais me identifiquei com uma frase na minha vida veio de uma obra muito pertinente em um texto sobre Dark Souls 2: o livro “A Culpa é das Estrelas”, de John Green.

É, sério. A história tangencia muito dos mesmos conceitos. Acredita em mim.

Mas, então, tem uma fala do Augustus que eu fico triste por ela ter uma tradução tão difícil para nós. Em inglês, quando perguntado sobre seu maior medo, ele diz:

“I fear oblivion.”

No Brasil, que eu me lembre, ficou traduzido como “eu tenho medo de ser esquecido”. É que na verdade não temos uma palavra tão forte como “oblivion” em nossa língua. “Esquecimento” funciona, mas a conotação não traz tudo o que deveria.

De qualquer forma, eu também tenho esse medo absurdo dentro de mim. Não de ser esquecido, mas de que todas minhas experiências, as boas e as ruins, deixarão de existir como elas existem na minha mente. Elas irão se dissipar assim como eu.

Sim, é triste. Dependendo da hora em que eu penso nisso, desesperador. Mas de alguma forma lindo. Como um pôr-do-sol eterno.

Lucatiel de Mirrah


Nada em Dark Souls 2 personaliza melhor esse meu fascínio pela entropia de nós mesmos do que Lucatiel — uma guerreira do distante reino de Mirrah e um nome ótimo para uma gata.

Sua história é bem simples. Ela foi contaminada com a maldição dos mortos-vivos e está em busca de uma cura antes que se torne Vazia.

Mas não é isso que faz dela minha personagem favorita de toda a série. Sim, tão favorita que uma história minha toca em vários pontos em comum mesmo eu tendo escrito antes de jogar.
É como ela tem essa visão clara de que, mesmo que alguém se lembre dela no futuro, como ela poderá dizer que é sem essas memórias.
Às vezes, eu me sinto obcecada… com essa coisa insignificante chamada autoconsciência.
 
Mas mesmo assim, estou compelida a preservá-la. Estou errada em me sentir assim?
 
Certamente você faria o mesmo em meu lugar?
 
Talvez estejamos todos amaldiçoados… desde o momento em que nascemos.
 
A jornada de Lucatiel durante seus diálogos é a maior síntese da ideia que permeia todos os jogos. É também uma analogia condensada da nossa entropia como seres autoconscientes. Do desespero em frente ao desconhecido para a aceitação de que isso possa ser um alívio.

Afinal, pensar que não somos eternos é excelente para a humildade. É também ótimo para tirarmos o peso de que cada decisão possa ser irreversível, imutável. Existem coisas irreversíveis sim, mas dentro do nosso próprio universo ainda podemos nos recuperar das piores memórias.

Há muito tempo eu rumino esse assunto na minha cabeça, por isso tenho certeza que não consegui falar tudo o que queria. Mas acho que é o suficiente para apreciar a beleza na melancolia, no que é efêmero. Pelo menos para mim, ganho uma perspectiva linda sobre meus maiores medos.




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