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Assimetria

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— Mas não é possível! Depois desse acesso de raiva explosivamente controlado, ele continuou um tempo parado, com a cabeça levemente pendendo, mão direita segurando o queixo com o braço esquerdo cruzado na frente apoiando. E os olhos fixos, tentando entender. À frente dele, um sofá cinza, um pouco desbotado no pedaço perto da janela. Mas o sofá era tão dispensável à cena que ele nem registrava sua presença. Acima dele estava o motivo de toda sua fúria ardente e contida. O quadro que ganhara da mãe, decorando sozinho a parede. Tinha uma moldura feita para parecer mais chique do que era. Madeira com alguns ornamentos entalhados, tudo pintado com uma tinta que já foi dourado vivo algum dia. O quadro em si era só um quadro desses de feira. Representava uma cidade de interior, com rua de pedra, casas coloniais e uma igreja no morro lá do fundo. A perspectiva estava claramente errada, para quem se desse ao trabalho de olhar por mais de um segundo. Não era feio, nem particularmente bonito. Era...

Hellblade 2: uma saga sobre empatia

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Mitos foram escritos na história por muitos motivos: para educar, para pôr medo, para inspirar, para justificar. Ou seja, mitos parecem muito terem sido feitos no passado como formas de entender a própria natureza humana, quando contar histórias era um dos poucos mecanismos que tínhamos para entender como a gente mesmo funcionava. Não, eu não tenho capacidade acadêmica para aprofundar no ponto. Mas, quando vemos tantos mitos usados em histórias de hoje, parece que uma boa parte dessa origem se perde. Fica apenas a casca: os nomes, os acontecimentos, talvez a grande moral vaga daquilo tudo.  Ao ponto em que, hoje, a maioria das mitologias mais famosas – como grega e nórdica – são muito mais sobre o heroísmo e poderes legais do que sobre entender nossas relações com os outros e nós mesmos. Felizmente, existem exceções. Hellblade 2: Senua’s Saga, é uma dessas. A magia quando não havia ciência Antes de falar especificamente sobre Hellblade 2, queria apontar como essa abordagem já exist...

O filme Parachute e os clichês de neurodivergência

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Isso pode parecer um choque para você, mas Hollywood não é exatamente uma referência em retratar a neurodivergência. Por isso que, quando alguém faz diferente, mesmo com uns problemas, ele se destaca tanto para mim. Eu fico, nossa, fizeram o básico. Que coisa, né? E é a aparente preocupação maior ao retratar esse tipo de situação como foco narrativo que eleva ainda mais o excelente Parachute, escrito e dirigido por Brittany Snow – aquela mesma que cantava no The Bellas com a Anna Kendrick. Logo depois que o filme terminou, fiquei pensando em como poderia explicar o que mais me cativou nele – além, claro, de atuações muito boas e um roteiro bem amarradinho. Mas só conseguir pensar em falar sobre Parachute listando todos os clichês de transtornos mentais que vejo retratados no cinema e como isso é estranho para quem realmente convive com esse tipo realidade.  Eu entendi o que Parachute foi para mim analisando o que ele não é. Baseando em alguns lugares-comuns tão presentes que resolv...

Introdução aos sonhos

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Quando eu fiz oito anos, estava pronto para a pergunta mais importante que existe: por que a realidade é real e o sonho não? Se quando a gente pensa no que passou, as duas coisas são memória do mesmo jeito? Bom, era importante para uma criança de oito anos. Minha vó era a pessoa com mais boa vontade no mundo. Eu olhava as noticias ruins na TV e me perguntava se não era culpa dela. Se acumular tanta boa vontade não a tornava escassa para os outros. Será que alguém poderia ser tão egoísta assim?  Má pessoa ou não, era a única que eu conhecia que me daria uma resposta. Meus pais responderiam algo que não perguntei. A internet responderia que estou à beira da morte. Os amigos da escolha não responderiam, apenas olhariam como se devessem se afastar de mim de repente. As opções de uma criança são sempre bastante limitadas. Sem ter para quem correr, apelei para a pessoa mais egoísta do mundo. Aquela que me responderia exatamente o que eu precisava ouvir, porque tinha boa vontade nesse nív...

Algo de impossível

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Havia algo de impossível no que acontecia e é a única coisa que até hoje não consegui processar. Todo o resto… Bem todo o resto era o que se espera de algo que não se espera. Uma imprevisibilidade previsível. Um choque que não choca, apenas paralisa. Mas havia algo de impossível e não sei dizer o que era. Não foi um acontecimento. Não foi uma fala. Não foi um sentimento. Tudo acontece em cadeia como deve ser. Tudo sempre acontece. O que era impossível não parecia encaixado no fluxo natural das coisas. Não é algo que se dê nome ou significado. Era uma parte do todo, mas não entrava na soma do todo. Uma equação em que se resolve tudo e ainda sobra uma letra. Se X tem seu valor, Y também, o que o Z está fazendo aqui? Olha só, nem essa analogia funciona bem. Eu não saberia dar uma letra, um número, um símbolo. Isso seria solidificar algo que não tem estado. Água vira gelo, vira gás, mas não vira nada além disso. Eu poderia continuar tentando achar uma figura de linguagem que funcione. É is...

A única luz acesa

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Um tempinho atrás, eu tive que ir até o aeroporto de madrugada. Uma sensação que não costumamos experimentar, de ruas vazias, sinais furados e contemplação. As luzes da cidade vazia passam diferente pelo olhar. Borram diferente. Colorem diferente. Batem diferente nos seus problemas. São muitas, mas por que muitos são os postes e os sinais. Nas casas, nos prédios, nas pessoas, elas são raras. Mas as histórias que contam… Descendo uma avenida, contemplando as ruas vazias, notei uma janela iluminada em um prédio residencial enorme. Quarenta? Cinquenta janelas? A única luz acesa. No vazio da madrugada e na contemplação, fui sugado para aquele lugar. Quem estava ali? Um casal? Uma família? Uma pessoa sozinha? E por que estavam com o cômodo iluminado a essa hora da madrugada? Insônia? Briga? Amor? Mas as histórias que eu contava, todas ao mesmo tempo, eram o de menos. Havia algo muito maior ocupando meu coração. Será que quem quer que estivesse lá sabia que era dela a única luz acesa? E mais...

As mesmas pessoas em todos os lugares ao mesmo tempo

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Esses dias eu estava zapeando a TV quando peguei Goonies bem no inicinho. Naquela parte que eles ainda estão na casa, sabe, quando entramos na bagunça divertida que é aquele grupo de amigos. Fazia muito tempo que não assistia, com certeza bem antes de ver Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo . Muito antes de ver a atuação maravilhosa do Ke Huy Quan e tudo que ele falou sobre sua experiência na indústria do cinema. Quando o Data entrou em cena, eu abri um sorriso imediatamente. Foi como aquelas correntes de dia das crianças em que você vê como já foram as pessoas que sempre conheceu adultas. Era apenas um moleque se divertindo fazendo um filme, mas… tudo o que vi de atuação de Ke Huy Quan hoje já estava ali de alguma forma. Claro, era crua, inocente, sem tanta técnica. Ao mesmo tempo, com os mesmos trejeitos, os mesmos olhares. A mesma pessoa. Essa constatação me deixou um tanto pensativo na hora. E o incômodo persistiu um tempo depois. Será que a gente não muda tanto assim por mais que ...