Sabe o que faltou para o Ever Given? Força de vontade

Foto do navio Ever Given navegando em alto mar


Incidentes como o do navio Ever Given, que recentemente encalhou no Canal de Suez e bloqueou uma das principais vias de transporte marítimo no mundo, é o tipo de acontecimento perfeito para piadas e reflexões.

Pensa só: um acidente sem vítimas, com consequência de apenas alguns dias e que no máximo faz perder dinheiro empresas que já tem muito dinheiro e algumas coisas atrasarem o frete. Se você é especialista e acha algo diferente, me desculpe ser eu a avisar, mas é isso que todo mundo acha. Inclusive eu.

Só que o mais engraçado é que a situação tão prevista aconteceu: o suplício de Ever Given, um excelente nome para filme de Oscar, não demorou a gerar as mensagens motivacionais de quem usa oportunidade como se fosse sabedoria.

Afinal, navio é uma coisa muito boa para fazer metáfora (eu sou culpado disso, não nego). Teseu que o diga. "A vida é o canal e eu sou o Ever Given", "Se até ele desencalhou, você desencalha também" e coisas do tipo. É fácil, é engraçado e encaixa tão bem como uma embarcação gigante entalada em um canal. Você pode culpar alguém por se aproveitar disso para parecer muito sábio, um verdadeiro coach?


Se pode, peço desculpas. Você vai começar a me culpar agora.


Depois de anos convivendo com depressão e/ou ansiedade, o que mais se houve de outras pessoas é a sua inabilidade de resolver seus problemas por conta própria. "Você faz questão de olhar o lado negativo das coisas", "Você é do contra o tempo todo", "É só tentar mais". "Parece que você quer ficar triste". "É só ter um pouquinho mais de força de vontade".

Acredite, já ouvi todas as variantes possíveis dessas frases. Com raiva, com cuidado, com arrogância, com dedos para machucar sem querer.

Infelizmente, estamos em 2021 e as doenças mentais ainda são tratadas como uma fraqueza de caráter ou uma vontade de aparecer ou simplesmente falta de vergonha na cara (para você ter uma ideia, só de escrever isso eu já estou me engatilhando). 

Bom, eu controlei minha depressão ao longo de anos de tratamento, medicação e autoconhecimento. E mesmo assim ainda sofro com ela — mesmo que não seja mais a convivência incapacitante de dias atrás. Por todo o tempo em que bati a cabeça contra a parede e dizia que "eu nunca seria diferente porque este sou eu" e "eu não tenho solução, então por que tentar", eu fui indiretamente avalizado e até incentivado a ter esses pensamentos pela sociedade.

A pior parte disso está nos coaches, nos profissionais motivacionais, nas reportagens de superação. A história de superação é tão aclamada que acaba sendo repetida em diversos meios e formas. E se ela passa a ser vista como a regra, então por que eu não consigo me superar? Todo mundo consegue!

No caso da depressão e outros transtornos mentais, isso se materializa na força de vontade. Você é triste porque não tem vontade de ser feliz. Você é letárgico porque não tem vontade de ser ativo.

Como isso pode fazer sentido para alguém? Quando você transporta esse argumento para outras patologias, fica claro o quanto ele é absurdo. Eu sou diabético Tipo 1, por exemplo (um dia falo mais sobre essa experiência). Ninguém me diz que eu só preciso ter vontade para voltar a produzir insulina. Afinal, não é assim que se cura um organismo. Por que seria diferente com uma anomalia no cérebro?

Mas infelizmente a ideia de separação entre corpo e alma ainda afeta muito a percepção sobre pessoas psicoatípicas, até nos menores níveis. Para deixar isso mais claro, podemos usar o próprio Ever Given.


Olha aí o meu oportunismo!


Era uma vez um barco bem grande que tentou fazer uma manobra confiante de que daria conta. Não deu e ficou preso por causa disso. Muitas pessoas falaram "mas ele nem parece tão preso assim" ou "que barco burro de se colocar nessa situação". "Se fosse eu conseguia sair dali facinho".

Então aqui vai mais um momento coach reverso: o Ever Given não se soltou com muita força de vontade. Não superou todos os desafios, tomou um café à prova de balas e fez o próprio desvio. Isso não existe. Ele se soltou com dias de um trabalho pequeno porém constante, dia a dia tirando um pouco de terra de cada vez até ele ter o mínimo de espaço para se endireitar.

Ele não forçou as margens. Ele não se forçou até o risco de rasgar seu casco. Ele contou com ajuda para que não precisasse lidar com isso sozinho. Um remédio, um plano e paciência. Uma escavadeira para abrir caminho, navios para ajudarem a se ajeitar na vida e aplausos quando conseguiu finalmente sair. 

O que isso nos ensina? Que fazer o mínimo, que é navegar em linha reta, pode parecer banal para você. Para outras pessoas, é uma batalha a cada dia. 




Postar um comentário

0 Comentários